“Os Órgãos Históricos de Aveiro”

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"Os Órgãos Históricos de Aveiro".

Estamos perante um valioso património de alto significado cultural e litúrgico, mas em grande parte escondido ou abandonado; apenas dois destes instrumentos foram restaurados: o do coro alto da igreja de Jesus e o da igreja da Misericórdia, faz agora quinze anos.

Domingos Peixoto *

O património organístico de Aveiro não passa despercebido ao olhar de quem visita algumas das igrejas da cidade, nomeadamente as de Jesus, da Glória, da Vera Cruz e da Misericórdia. Aos instrumentos destas igrejas há que acrescentar mais dois na reserva do Museu de Aveiro/Santa Joana (órgãos das carmelitas e da antiga sé), o do convento do Carmo (actualmente na igreja de Pinheiro da Bemposta – Oliveira de Azeméis) e, como hipótese de trabalho, o da igreja matriz de Ílhavo, proveniente, possivelmente, do antigo convento da Madre de Deus de Sá.

No capítulo inicial faz-se o enquadramento destes órgãos históricos no contexto socioeconómico, religioso e litúrgico, acrescentando uma breve nota sobre a função do organista, à luz do Livro do Regimento dos Eclesiásticos e Coro da Igreja da Misericórdia, datado dos finais do século XVIII. Seguem-se mais nove capítulos sobre os órgãos existentes, incluindo os que daqui partiram no século XIX.

Começamos pelo órgão da igreja da Vera Cruz, não apenas por ser o mais antigo (1753, data inscrita no someiro), mas também pela notoriedade do organeiro construtor – Juan Fontanes de Maqueyra, de quem estamos ainda a celebrar o terceiro centenário do nascimento – e pelo valor crucial desta peça para a investigação sobre a organaria em Portugal. Do órgão da Misericórdia apresentam-se apenas os dados essenciais, remetendo o leitor para um estudo mais completo, editado em 1998: Santa Casa da Misericórdia de Aveiro. Prática Musical, capítulo IV.

São fornecidas em anexo algumas informações complementares sobre os órgãos históricos da cidade de Aveiro já desaparecidos, sobre o da igreja matriz de Covão do Lobo, recentemente restaurado, sobre o caso particular do órgão da igreja do Seminário de Santa Joana Princesa e sobre o restauro do órgão do coro alto da igreja de Jesus. Finalmente, acrescenta-se uma relação dos órgãos modernos que, uns após outros, foram sendo construídos ou importados de outros países para algumas igrejas, capelas e escolas da diocese de Aveiro.

No percurso feito ao longo deste livro observámos a presença do ‘rei dos instrumentos’ em Aveiro desde a primeira metade do século XV, acompanhando o florescimento económico da vila.

De facto, pese embora a apreciação negativa dos opositores à vinda da Infanta Dona Joana para este lugar, considerando-o ‘mui pequeno e desprezível’, a vila era das mais prósperas do reino.

Apesar de algum declínio posterior, Aveiro foi ‘vila notável’, cidade e sede de diocese. Ao longo dos séculos XVI e XVII, a abertura de novas freguesias e a fundação de mais casas religiosas implicou a construção de órgãos para os respectivos templos. Esta presença foi-se desenvolvendo, culminando na construção do monumental órgão da igreja de Jesus na segunda metade de setecentos.

Nobre reentrou o órgão no ocidente, nobre entrou na igreja e assim continuou ao longo dos séculos, porque assim foi considerada a sua função no culto ao Altíssimo. Foi símbolo do poder real, foi também símbolo da importância das diversas instituições religiosas, seculares ou regulares. Por isso, encontramo-lo nas igrejas portuguesas, ora com uma sonoridade poderosa ou discreta, ora com feições ricamente adornadas ou com um semblante mais austero.

Também na cidade de Aveiro nos deparámos com instrumentos de rosto esplendoroso e voz potente – o caso particular da igreja do mosteiro de Jesus – ou de fachada de madeira artisticamente trabalhada mas sem outra decoração, como é o caso dos do convento de Santa Maria de Sá ou da antiga catedral. A segunda metade de setecentos representa o esplendor organístico em Aveiro, com a construção de seis órgãos novos em temploss conventuais e no da Misericórdia. A eles se vieram juntar, cerca de um século mais tarde, os órgãos reconstruídos da igreja da Glória – por António José dos Santos Júnior em 1883 – e da antiga sé, também na segunda metade de oitocentos. Trata-se de um conjunto de instrumentos, cuja excelência lhes advém, quer dos seus autores, quer do requinte da decoração, quer ainda de particularidades da sua voz. Cada um deles ocupa o seu lugar próprio e tem uma palavra a dizer no estudo da organaria portuguesa.

Estamos perante um valioso património de alto significado cultural e litúrgico, mas em grande parte escondido ou abandonado; apenas dois destes instrumentos foram restaurados: o do coro alto da igreja de Jesus e o da igreja da Misericórdia, faz agora quinze anos.

Uma presença tão afirmada do rei dos instrumentos em Aveiro é um desafio à cidade, à diocese e à cultura. Uma particular interpelação é feita pela majestosa obra de arte que representa o ‘órgão grande’ da igreja de Jesus – o ex-libris da nossa vida organística – cuja opulência rivaliza com o esplendor setecentista das festas em honra de Santa Joana; mas, dele subsiste in loco apenas a fachada.

O Museu de Aveiro/Santa Joana é uma passagem obrigatória de nacionais e estrangeiros que visitam a cidade e os tesouros de vários séculos de história da arte em Portugal. O imponente rosto do ‘órgão grande’ fascina o olhar do visitante que, inconformado, deixa no ar a incontornável pergunta: por que não toca?

Resta-nos esperar que destas linhas brote um impulso novo à recuperação do conjunto dos órgãos históricos da cidade, uma ‘maioria silenciosa’ à espera de quem lhe dê a palavra.

* Professor de Órgão e investigador

Excertos do livro “Os Órgãos Históricos de Aveiro” com apresentação agendada para 16 de dezembro, pelas 15:00, na Igreja de Jesus (Museu de Aveiro / Santa Joana).