Agricultura camponesa e familiar e os sistemas alimentares saudáveis em Portugal

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Protesto de agricultores, Aveiro.
Comercio 780

A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) considera ser da maior importância que o tema do papel dos camponeses na garantia das várias dimensões da sustentabilidade dos sistemas alimentares seja trabalhado no contexto da investigação científica. Estamos muito satisfeitos por ter feito parte deste projecto e por ter contribuído para as suas conclusões.

Por Vítor Rodrigues *

Em todo o mundo, e por maioria de razão em Portugal, vivemos numa época em que o discurso político oficial enaltece os méritos da agricultura industrial em garantir a segurança alimentar, tendo mesmo sido capaz de acrescentar algumas vantagens verdes à utilização das tecnologias mais modernas, no sentido de uma noção vaga e não inequívoca de intensificação sustentável. Contudo, este discurso esquece algumas dimensões essenciais da sustentabilidade, tais como os direitos dos trabalhadores rurais, a simplificação e o empobrecimento da paisagem e, sobretudo, todas as outras consequências económicas, sociais e ambientais do despovoamento dos territórios rurais. Para este discurso oficial, a criação de valor e lucros dentro das fronteiras das explorações, independentemente dos custos para os trabalhadores, ambiente e sociedade, é a sua única preocupação.

Em contraste, o contraponto a este discurso oficial é, em muitas ocasiões, uma visão em que a maioria das actividades agrícolas implicam sempre consequências negativas para o ambiente, e onde a renaturalização é vista como única opção para contrariar essas consequências negativas.

No meio de uma tal oposição de narrativas, parece não haver lugar para os camponeses e para a agricultura familiar. Contudo, a agricultura camponesa e familiar ainda se impõe como uma realidade incontornável, apesar dos grandes reveses que tem sofrido nas últimas décadas, perdendo peso em número de explorações, valor económico e utilização da terra, tanto para a agricultura industrial como para a marginalização e para o abandono da agricultura.

O papel da agricultura camponesa e familiar na produção agrícola, emprego agrícola, conservação da biodiversidade, paisagens culturais de alto valor, e formas mais sustentáveis e seguras de consumo alimentar é amplamente reconhecido. As explorações familiares ainda representam cerca de 242 mil explorações em Portugal (94% do número total de explorações), abrangendo 54% da superfície agrícola utilizada e mais de 80% do trabalho agrícola. Estes são dados que estão no preâmbulo do decreto que institui o Estatuto da Agricultura Familiar, que entrou em vigor em 2018 e que se devia ter materializado numa grande conquista para os camponeses e agricultores familiares.

No entanto, nesse mesmo preâmbulo, é também reconhecido que 30% das explorações agrícolas familiares não recebem qualquer forma de pagamento da Política Agrícola Comum (PAC). Sabe-se também que existe uma grande assimetria na distribuição desses pagamentos, onde 7% das explorações, na sua maioria as grandes em termos de área, recebem cerca de 70% dos pagamentos da PAC, enquanto as mais de 90% mais pequenas recebem 30% desses pagamentos. A injustiça desta assimetria é ampliada, se tivermos em conta que grande parte desses pagamentos estão a ser dirigidos para terras que, na realidade, se encontram num estado de semiabandono.

O que estes factos revelam é que, em Portugal, na Europa, e em todo o mundo, são necessárias, e com urgência, políticas públicas que vão além das declarações políticas de boas intenções, muitas vezes envoltas em meros anúncios de milhões de euros, o que é muito para uma exploração, mas muito pouco para todos os agricultores envolvidos.

É essencial que os governos e as instituições adoptem políticas e orçamentos que correspondam, não só à actual importância económica, social e ambiental da agricultura camponesa e familiar, mas também à urgência de travar e inverter a trajectória do despovoamento nos territórios rurais; de perda de valores ambientais, económicos e culturais; de dependência de produtos alimentares externos, muitas vezes pouco saudáveis, perigosos do ponto de vista ambiental e social, cuja produção está cada vez mais concentrada e ligada a grandes empresas; de aumento de vastas áreas de monoculturas agrícolas e florestais altamente intensivas.

Ou seja, são necessárias políticas em que a escala dos meios disponíveis corresponda à escala dos problemas, e também à escala da contribuição decisiva que os camponeses e os agricultores familiares podem dar para superar tais problemas.

Essa contribuição decisiva, amplamente demonstrada, ultrapassa assim as dimensões da segurança dos alimentos e da capacidade produtiva. É por sua vez uma questão de soberania alimentar, que também vai para além das meras questões de autoaprovisionamento. Essa contribuição decisiva tem as suas raízes na possibilidade de conciliar a dignidade dos agricultores, a viabilidade das suas explorações e meios de subsistência, a manutenção e aumento dos valores culturais e ambientais, e a proteção contra riscos e danos ambientais, agravados pelas alterações climáticas.

Estas políticas têm de representar uma abordagem integrada, tal como se prevê no Estatuto da Agricultura Familiar em Portugal. Uma abordagem integrada em que a produção agrícola e a dignidade dos agricultores são fundamentais. Onde são instrumentais a regulamentação dos preços e do mercado, a construção de cadeias curtas de abastecimento, a manutenção das práticas agroecológicas e da agro-biodiversidade tradicional, a organização da produção, para lidar com os principais grossistas e retalhistas, e a contratação pública para abastecimento de produtos alimentares. Mas também onde outras políticas convergem para reforçar os seus impactos, em áreas como a segurança social, impostos, preços da energia, investimento, saúde, educação, tecnologia e conhecimento, transportes públicos e comunicações.

Com tais políticas em prática, pelo menos com passos positivos e decisivos nessa direcção, será possível um futuro melhor, onde o pleno potencial da agricultura camponesa e familiar seja libertado, e as suas contribuições para a sustentabilidade económica, social, territorial e ambiental estejam plenamente implantadas.

* Membro da direcção da CNA. Artigo originalmente publicado em https://cna.pt/. Intervenção numa iniciativa do projecto Just Food, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. O projecto Just Food investiga a temática da justiça alimentar no contexto europeu, com especial enfoque nas questões da agricultura camponesa e familiar, a partir de casos de estudo em Portugal e na Roménia.

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