Como vamos construir a cidade e a sociedade pós-pandémica?

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Imagem disponível em www.coe.int.

Foi notável o que foi possível fazer durante essa emergência com a mobilização da energia cívica, empresarial e institucional e a ativação de inúmeros recursos latentes, geralmente invisíveis e nem sempre valorizados.

Por José Carlos Mota *

A pandemia da Covid-19 irá marcar decisivamente o nosso futuro. Deixará um rasto dramático de perdas humanas, sofrimento e destruição de empregos que demorará muito a ser reparado. Em Portugal, por exemplo, já há mais de 300 mil pessoas contaminadas, cerca de um milhão de portugueses já deverá ter tido contacto com o vírus (1) e mais de 4.900 pessoas morreram em resultado da doença.

Territórios de elevada concentração de pessoas e atividades e, por esse motivo, onde se registam os maiores focos de contaminação, as cidades estão a ser os palcos dos maiores impactos desta pandemia.

A proximidade física, uma das características principais da natureza urbana, passou a constituir um risco de saúde pública.

Fruto das restrições impostas, o confinamento fez com que se passasse a valorizar ainda mais o espaço público e o ar livre. A sua escassez ou falta de qualidade entrou no debate público e levou a que muitos – em particular os urbanistas – começassem a questionar as formas de organização e fruição da cidade.

O problema da cidade e o seu futuro passaram a ser um feliz efeito colateral da pandemia. Contudo, o que afeta o futuro das cidades não é só a ameaça de saúde pública.

Há um conjunto de problemas cuja dimensão é tão grave e a resolução tão urgente quanto esta pandemia.

A crise climática, demonstrada pelo aumento médio da temperatura e pelos fenómenos climáticos severos, ameaça a sobrevivência humana (2).

As crescentes desigualdades sociais, ilustradas pelo facto de 2.153 bilionários possuírem uma riqueza equivalente a 4,6 bilhões de pessoas (3), levantam fundadas perplexidades e problemas de coesão à escala mundial.

Perante tamanhos desafios, complexos e sobrepostos, não será fácil encontrar respostas evidentes e fáceis de executar. Ainda assim, talvez valha a pena olhar para o que fizemos durante estes nove meses de pandemia e tentar encontrar neles caminhos inspiradores.

O confinamento realizado de março a maio mostrou um conjunto de novas ações coletivas.

Poucos dias depois de decretado o lock down, 1,6 milhões de alunos passaram a ter aulas à distância e quase um quarto dos 4,9 milhões de trabalhadores passaram a realizar a sua atividade profissional de forma remota (4). As dificuldades de acesso ao ensino à distância fizeram com que surgissem plataformas cívicas de oferta e/ou empréstimo de computador (5) ou de apoio ao estudo solidário
(6).

A necessidade de abastecimento das famílias gerou um enorme esforço de digitalização de serviços, de fornecimentos ao domicílio, ativando circuitos curtos de produção e consumo local e de micrologística urbana.

Por último, o isolamento de pessoas idosas ou de risco, ativou redes solidárias de entrega de alimentos e medicamentos em casa e de doações de produtos alimentícios, e as relações de vizinhança tiveram um novo fôlego com o surgimento de grupos de apoio através das redes sociais (7), promovendo micro-eventos comunitários e também reflexões online.

Foi notável o que foi possível fazer durante essa emergência com a mobilização da energia cívica, empresarial e institucional e a ativação de inúmeros recursos latentes, geralmente invisíveis e nem sempre valorizados.

Neste curto período, foi possível experimentar um novo modelo de sociedade e de cidade há muito desejado, um modelo mais solidário, colaborativo e de proximidade.

Um modelo que, em condições anómalas, provou ser muito eficaz e possível.
É, pois, este o desafio que se coloca no futuro pós-covid. Como vamos aprender com o que fizemos diferente e de que forma podemos mudar os nossos objetivos e a forma como nos organizamos coletivamente, como nos mobilizamos por causas de interesse comum e como valorizamos o que somos e o que temos.

(1) https://www.publico.pt/2020/12/03/sociedade/noticia/cerca-milhao-portugueses-ja-devera-contacto-virus-1941608
(2) Christiana Figueres e Tom Rivett-Carnac “O futuro que escolhermos”, Temas e Debates, 2020
(3) Oxfam Report https://www.oxfam.org/en/tags/inequality
(4) INE, 2020
(5) Student Keep https://studentkeep.org/
(6) Aveiro é nosso https://www.aveiroenosso.pt/
(7) Vizinhos de Aveiro https://vizinhos-aveiro.pt/

José Carlos Mota.

* Docente do Departamento de Ciências Sociais, Políticas e do Território da Universidade de Aveiro. Artigo publicado originalmente na ‘Revista Linhas’, da Universidade de Aveiro (Dezembro de 2020).

 

 

 

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