Aveiro / Tesouro único: A maior extensão, ainda activa, de via férrea em bitola métrica do país

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Linha do Vouga, estação de Eirol.

Nos inícios do século XX, a Linha do Vouga era uma das maiores e mais importantes vias férreas em bitola métrica de Portugal.

Bruno Soares *

O “Vouguinha” não é simplesmente um apelido, quase familiar, com que a maioria dos aveirenses trata o comboio que circula na centenária da Linha do Vouga. Não. O “Vouguinha” é um símbolo cultural, não apenas do nosso distrito, mas também do país. Apesar da familiaridade com que é tratado, este comboio tem vindo a criar, sobretudo nos últimos anos, uma relação de “amor-ódio”, sobretudo, com aqueles que o utilizam com maior regularidade. E esse sentimento tem vindo a cegar, não apenas quem o utilizada, mas, também, quem através dele faz campanha política. Infelizmente, ainda há muita gente que não consegue ver o tesouro que serpenteia os vales do nosso distrito.

Nesta altura, o caro leitor, muito provavelmente, já deve estar a interrogar-se como é que um comboio “velho” e uma linha, em boa parte, degradada perfazem um tesouro nacional. Bom, para chegarmos à resposta, temos de recuar até ao ano de 1907, altura em que Portugal via o seu rei D. Carlos ser assassinado e, posteriormente, o seu filho, de apenas 18 anos, D. Manuel II, assumir as rédeas da nação. Na realidade, foi no ano de 1877 que surgiram os primeiros projectos para a criação da “Linha do Valle do Vouga”, mas só trinta anos depois é que o contrato, para a sua construção e exploração, fora fechado, ficando, assim, os trabalhos a cargo da empresa francesa “Compagnie Française pour la Construction et Exploitation des Chemins de Fer à l’Étranger”. Sensivelmente um ano depois, no dia 23 de Novembro, o jovem rei inaugurava o primeiro troço, com cerca de 30 quilómetros, entre Espinho e Oliveira de Azeméis.

Em Fevereiro de 1909, é aprovada a construção do Ramal de Aveiro, que visava ligar a estação com o mesmo nome à “Linha do Valle do Vouga”, em Sernada do Vouga, e o projecto para as instalações do entroncamento do ramal com a Linha do Norte, em Aveiro. Nesse mesmo ano, é finalizada a ligação entre Oliveira de Azeméis e Albergaria-a-Velha.

A construção do ramal de Aveiro só terminaria em Setembro de 1911, aquando da ligação entre Albergaria-a-Velha e Macinhata do Vouga estar finalizada. Nesta altura, a linha apresentava uma extensão total de aproximadamente 100 quilómetros, os mesmos que ainda subsistem hoje em dia. Finalmente, já no ano de 1914, a linha fica finalmente concluída, através da ligação, com cerca de 80 quilómetros, entre Sernada do Vouga e Viseu.

Nos inícios do século XX, a Linha do Vouga era, portanto, uma das maiores e mais importantes vias férreas em bitola métrica (distancia entre carris de 1 metro) de Portugal. Muito por culpa nacionalidade da empresa construtora, o estilo arquitectónico francês está bem patente na maioria das obras de arte desta linha, como pontes, túneis e estações.

Por entre altos e baixos, atravessando períodos de crise e bonança, toda a extensão da linha manteve-se em exploração… até Cavaco Silva chegar ao governo. Em meados da década de 70, ainda não estava extinta a tracção a vapor e, como tal, a Linha do Vouga estava constantemente a ser associada aos incêndios que deflagravam no percurso até Viseu. Embora se tenha substituído as velhas locomotivas a vapor por automotoras a gasóleo, a situação da ligação a Viseu não era a mais favorável, pois a falta de manutenção e modernização tornavam a viagem entre Aveiro e Viseu bastante penosa (a viagem demorava cerca de 4 horas) e, consequentemente, o afastamento de passageiros era inevitável. Na década de 80, nada se fez para reverter o cenário caótico. É, então, aqui que entra em acção o mais recente primeiro ministro de Portugal, o professor Aníbal Cavaco Silva.

A lição estava mais que estudada e essa passava por encerrar aquele por muitos considerado o troço mais bonito da Linha do Vouga. E assim foi. No dia 1 de Janeiro de 1990, a linha ficaria irremediavelmente amputada e Viseu não mais veria o comboio passar. Estava dado o mote para, aos poucos, se encerrar os restantes troços de via estreita existentes em Portugal, já que no mesmo ano se tinha encerrado, também, a Linha do Sabor e a Linha do Dão. A chegada do novo século não foi igualmente benéfica, já que nas últimas duas décadas, a falta de investimento, neste sector ferroviário, levou ao encerramento de cerca de 500 quilómetros de linha, em todo o país. Tua, Corgo e Tâmega são os exemplos mais recentes.

Ainda que ferida na sua dignidade pelo encerramento do troço que a ligava a Viseu, a Linha do Vouga, que completará este ano 110 anos de existência, é a derradeira sobrevivente. Infelizmente, tirando pequenas obras de melhoria que se verificaram nos últimos anos, esta linha continua “ligada às máquinas”, sempre com o futuro incerto. E alguns dos “órgãos vitais” que lhe restam, começam a dar de si. Primeiro, com a transformação da estação de Espinho-Praia em gare subterrânea, desaparece a ligação directa com a Linha do Norte, passando Espinho-Vouga a ser a estação terminal. Segundo, derivado a décadas de descuido e falta de manutenção, o troço entre Sernada do Vouga e Oliveira de Azeméis vê-se completamente ao abandono e sem serviço de passageiros.

Hoje em dia, é utilizado apenas para que as automotoras possam ir às oficinas. Cerca de 100 quilómetros de linha ainda estão activos mas em apenas 70 ainda é possível viajar. Em bom nome da verdade, é de salientar que a Linha do Tua não foi encerrada na sua totalidade, mas foi desclassificada da rede ferroviária nacional. Na via transmontana, restam pouco mais de 30 quilómetros dos 134 iniciais e em apenas 15 ainda é possível viajar. Os restantes quilómetros esperam que a burocracia os liberte para que o empresário Mário Ferreira, da Douro Azul, posso ali operar de forma turística. Para concluir, no nosso país, já existiram mais de 700 quilómetros de via estreita, dos quais restam apenas 130. Desses 130, apenas é possível viajar em cerca de 85 e 70 correspondem, como já verificamos, à Linha do Vouga. A resposta à pergunta inicial torna-se ainda mais clara quando, no ano de 2017, se fez história, pois “alguém” percebeu o verdadeiro valor do tesouro que serpenteava o nosso distrito e resolveu “oferecer-lhe” um comboio histórico. E, afinal, o tesouro era ainda mais valioso do que se pensava, já que no presente ano duplicaram as viagens turísticas! Pouco se fez e o tesouro revelou o seu valor. Imaginem se muito se tivesse feito…

* Membro do Movimento Cívico pela Linha do Vouga.