A natureza da guerra e a guerra à natureza

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Guerra na Ucrânia (2022).
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Os conflitos armados que marcam a história mais recente da Humanidade, marcam igualmente a existência de cada um de nós, fundamentalmente pelo paradoxo de expor o lado mais desumano do ser humano.

Por Mário Pacheco *

Um dos ângulos menos explorado deste sombrio contexto é o impacto que cada um destes conflitos (antropogénicos) tem nos ecossistemas, não excluindo obrigatoriamente o Homem como seu elemento. É esse olhar que aqui se propõe, como exercício de consciência plena e sem polarizações filosóficas.

Cada um de nós posiciona-se intelectual e emocionalmente em relação às principais questões ambientais de acordo com um sistema de valores que abarca perspetivas com um foco na Humanidade (antropocentrismo) até àquelas centradas na natureza, tendo o Homem como seu membro (biocentrismo e ecocentrismo). Este preâmbulo pretende colocar o objetivo desta coluna num quadro estritamente informativo, isento de polarizações filosóficas e de hierarquias na relação Homem-natureza.

O mesmo significa dizer que conhecer o impacto ambiental da guerra em nada conflitua com o reconhecimento do inerente sofrimento humano e do desrespeito pelos direitos humanos estabelecidos num conjunto de normas internacionais. Em reforço desta ideia, impõe-se dar conta de que o chamado direito da guerra não omite a questão ambiental, como acontece com a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 19921, onde se pode ler no Princípio 24: “A guerra é, por definição, inimiga do desenvolvimento sustentável. Em consequência, os Estados deverão respeitar as disposições de direito internacional que protegem o meio ambiente em épocas de conflito armado”.

O impacto ambiental da guerra

Não sendo um tópico alvo de profusa atenção da comunidade científica, a informação disponível aponta, contudo, para um impacto manifestamente subestimado pela opinião pública, atendendo à magnitude e duração dos efeitos em ecossistemas com localizações nem sempre circunscritas. Entre os impactos diretos dos conflitos armados assoma de imediato a vasta destruição de ecossistemas resultante de minas terrestres e navais, assim como de bombardeamentos (ex. 1 milhão de hectares de floresta destruídos na Guerra do Vietname, 1964-19752; perda de 20,4% de cobertura arbórea na Síria, 2012-20193).

Na mesma linha, destaca-se a destruição de infraestruturas petroquímicas, com a subsequente libertação de hidrocarbonetos, afetando em particular o meio marinho (ex. efeitos adversos em tartarugas, baleias e aves marinhas descritos no Golfo Pérsico aquando da Guerra do Golfo, 19912), tal como derrames a partir de unidades industriais danificadas, com impacto adverso no biota de águas continentais (ex. libertação de ácido clorídrico e compostos de mercúrio em ecossistemas fluviais da Sérvia aquando do conflito dos Balcãs, em 1999, afetando igualmente a Roménia e Bulgária2).

Como impactos indiretos, importa relevar os decorrentes do armazenamento de resíduos militares e da produção e testagem de armas, em particular as nucleares. Considerando apenas a 2ª metade do sec. XX, foram reportados cerca de 2000 testes com armas nucleares, com a libertação de quantidades relevantes de radioatividade (ex. 18 milhões de Curies de estrôncio-904).

Várias emissões acidentais de radioatividade resultantes de operações de rotina foram relatadas em instalações da indústria militar dos EUA4. Não é igualmente negligenciável a pressão exercida pelo estabelecimento de campos de refugiados sobre áreas de maior fragilidade ecológica, e a subsequente exploração no sentido da obtenção de vegetação lenhosa e animais selvagens, respetivamente como fontes de combustível e proteína.

Os impactos descritos podem ser agravados por frequentes vazios de governança no pós-guerra e pelas mudanças climáticas, para as quais contribuem as maciças emissões de CO2 e outros gases com efeito de estufa (ex. as emissões militares nos EUA, 2001-2017, equivalem à circulação de 257 milhões de veículos de passageiros ao longo de um ano5) associadas aos períodos pré, durante e pós conflito.

Ironicamente, a natureza da guerra converteu-a num ataque (unilateral) à natureza, numa ação onde os beligerantes, inadvertidamente, se tornam aliados.

A reconstrução no pós-conflito deve passar por um apoio às comunidades, integrado com uma reabilitação ambiental com recurso a ferramentas ambientalmente adequadas.

* Docente e investigador da Universidade de Aveiro (DBio & CESAM). Artigo publicado originalmente no site UA.pt.

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