A matilha de S. Jacinto e a lei exposta à indiferença

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Praia de S. Jacinto, Aveiro.
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Desde 2017 que a Câmara Municipal de Aveiro promete a construção de um Centro de Recolha Oficial de Animais, a adoção de medidas preventivas contra o abandono e um programa eficaz para controlar os nascimentos nos animais sem detentores. Passados seis anos, nada foi feito.

Por Rui Medeiros Alvarenga *

De vez em quando surgem notícias sobre um dos efeitos mais graves desta irresponsável inércia: a multiplicação de matilhas. Por estes dias, S. Jacinto foi notícia, como Eixo, Cacia e Oliveirinha, já haviam sido. Nas sessões da Assembleia Municipal, a disciplina partidária tem vindo a sobrepor-se ao discernimento, e os braços de uma maioria cega levantam-se frenéticos para rejeitarem propostas que possibilitariam resolver o problema e cumprir a Lei. Portanto, as freguesias transferem o assunto para a Câmara; esta não faz nada e diz que não apanha os animais porque não sabe como, e que tem de ser o ICNF – Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas – a agilizar a captura.

Questionado este organismo, o mesmo esclarece que recomendou à Câmara Municipal de Aveiro o seguinte procedimento: “a solução para o alojamento imediato de uma matilha de cães «assilvestrados» é um «parque de matilha». Para este efeito, propôs-se a construção destas estruturas, relembrando a disponibilidade recente de apoios financeiros dirigidos a esta temática, ou em alternativa, a articulação com municípios que já dispõem de parques de matilha, e ainda dos meios e pessoal técnico com conhecimento e experiência adquiridos neste processo. No que respeita à captura, foi transmitida a necessidade do Município se munir dos recursos necessários à prossecução do objetivo, em estrito cumprimento das normas de bem-estar animal em vigor, e sempre condicionado ao pedido de licença/credencial ao abrigo do art.º 7º, da Portaria n.º 146/2017, de 26 de abril, e do Decreto-Lei nº 38/2021, de 31 de maio”. Por conseguinte, a posição do ICNF comprova a má vontade política do Executivo Municipal de Aveiro. E nesse sentido, é importante referir que, muito recentemente, na Assembleia Municipal, foi novamente rejeitada uma proposta do PAN sobre a criação de um parque de matilha, que confluía precisamente com o procedimento sugerido pelo ICNF.

Por outro lado, o Presidente da Câmara não evidencia qualquer tipo de estratégia ou noção de como garantir a proteção destes animais, dizendo apenas que está a trabalhar para definir uma “operação” para os recolher, anunciando que será uma operação difícil, porque os animais são “muito selvagens”. Parecendo que se prepara para uma guerra, talvez seja prudente que alguém acalme o ímpeto de exterminador do senhor Presidente e lhe transmita que o facto destes animais não terem sido socializados com pessoas, e de terem os instintos básicos de sobrevivência mais reforçados do que os cães outrora domésticos, para além de terem de passar pelo habitual exame médico-veterinário, precisam de ser habilitados à adoção. Isto significa que necessitam ainda de ter o seu comportamento condicionado de modo a canalizar os seus instintos para os objetivos pretendidos, e ser adestrados em obediência básica para que sejam capazes de desenvolver respostas sólidas ao controle verbal e às diferentes situações às quais serão expostos na futura e desejada vida doméstica. Consequentemente, convém que alguém pergunte ao senhor Presidente sobre o destino a dar aos cães e sobre a garantia do seu bem-estar e segurança. E a pergunta não pode ser feita seis meses depois, mas sim no preciso momento em que decorrer a tal “operação especial”.

Por tudo isto, torna-se evidente que a concretização do que a Lei consigna, ficou totalmente exposta à indiferença da maioria dos executivos municipais. Aliás, os bons exemplos (porque os há), foram igualmente ignorados pelos seus pares. Ironicamente, um dos municípios que mais progressos tem realizado nesta matéria é a Câmara Municipal de Matosinhos, cuja Presidente é também a mais alta representante da Associação Nacional dos Municípios Portugueses. Já a ANAFRE – Associação Nacional de Freguesias, neste assunto, acompanha a preferência dos seus associados pela invisibilidade.
O relatório de 2022 do ICNF clarifica quase tudo sobre a desarticulação que subsiste entre as entidades competentes, bem como exprime a ligeireza com que os municípios acolheram o espírito da Lei. Alguns municípios nem sequer se deram ao trabalho de realizar a demonstração dos seus resultados, existindo mesmo casos reincidentes, que nos anos anteriores haviam já declarado um relatório “sem dados”.

Também subsistem concelhos que conseguiram um retrocesso, pois apesar de apresentarem alguns números em 2021, deixaram de poder dar o seu contributo ao relatório do ano seguinte. Outros justificam a ausência de dados com o facto de não possuírem CROA. Curiosamente não é o caso de Aveiro, porquanto o facto de não ter centro de recolha ou qualquer outro espaço para o efeito, não impediu a autarquia de informar que, em 2022, recolheu 66 animais, adotou 27, esterilizou 45, vacinou 249, tendo recorrido uma vez à eutanásia, ficando apenas por aferir em que condições realizou cada uma destas ações, e onde se encontram o número remanescente de animais. Cerca de quatro dezenas de municípios declararam apenas dados sobre vacinações antirrábicas realizadas, indicador que se refere a animais com detentores. Será ainda interessante mencionar que existem alguns municípios que declararam ter realizado dezenas de adoções e esterilizações sem recolherem qualquer animal.

Os relatórios são públicos e uma análise atenta consagra a evidência de que não se pode confiar em nenhum deles, porquanto são incompletos e pouco rigorosos. Os únicos dados encorajadores são os números totais que refletem uma diminuição global de eutanásias realizadas desde 2018 (62,55%), ainda que no ano de 2022 se tenha registado um ligeiro aumento face a 2021 (8,68%).

Somos o único país que teve de se confrontar com esta realidade? Não, claro que não. Como se resolve este problema? Só através de um programa de políticas públicas, como os Países Baixos realizaram. A Lei foi um extraordinário ponto de partida. Mas tinha de ser completada por medidas complementares, com um financiamento sério e com metas ambiciosas e bem definidas no tempo. As lideranças do PAN e os seus deputados, que sempre coincidiram, pensaram que bastava aprovar uma Lei para que o problema ficasse resolvido. E agora, descansam entorpecidos sobre o sublime texto que a Assembleia da República aprovou em 2016, sem que deem sinais de compreender a falha e a urgência. Aprovar a Lei foi muitíssimo importante, não havendo sobre esse aspeto nenhuma dúvida. Mas este tipo de norma, que coloca o ónus da sua aplicação nos executivos municipais, necessita, infelizmente, de um “estímulo”, que pode ser dado através de apoios específicos, ou de mecanismos de dissuasão que previnam o incumprimento, sendo que, em ambos os casos, tem de envolver verbas adequadas, a definição de metas e, obviamente, fiscalização.

A par dos municípios, o governo do Partido Socialista é também muito responsável por este fracasso, pois apoiou uma Lei muito ambiciosa, mas não salvaguardou todas as condições para a sua concretização. Mas o PAN é igualmente responsável, porque não está a conseguir defender o trabalho que desenvolveu para conseguir alcançar um texto legislativo verdadeiramente progressista. Tem sobretudo a obrigação de não adormecer e de liderar a contestação pelo facto de nada estar a acontecer como era suposto. O PAN não propôs nem lutou por metas concretas, por um financiamento realista, nem por um calendário exequível, e não tem desenvolvido nenhum trabalho ao nível da verificação da aplicação da Lei junto do governo. Seis anos depois da Lei ser aprovada, talvez fosse mais sensato acabar-se com a celebração, voltar ao terreno, e retomar o trabalho que, afinal, ainda mal começou.

*   Filiado do PAN. Recentemente eleito membro da Comissão Política Nacional.

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