Virar a cidade do avesso em resposta à covid

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Os próximos tempos vão exigir aprendermos a viver numa proximidade regulada e isso implica ter de reinventar nas cidades a forma como organizamos no espaço e no tempo as funções do trabalho, do ensino, do lazer e cultura e da deslocação.

Por José Carlos Mota *

Este ano, o regresso à escola vai ser um momento particularmente preocupante face ao receio da covid-19. Não havendo um receita mágica para prevenir o risco de contágio, foi recentemente apresentada a alternativa possível – “a segunda vaga da covid é evitável se forem reduzidos os contactos nas escolas”. Mas como é possível garantir a distância física entre os mais de 1,6 milhões de estudantes que nos diferentes graus de ensino se vão voltar a encontrar daqui a uns dias?

Segundo peritos da Universidade de Oxford [1], o risco do contágio depende essencialmente de cinco fatores, que o médico A. Óscar Mota evoca com a mnemónica MaMeMiMoMu: Ma (máscaras, com ou sem), (meio sonoro, desde murmurar a gritar, no sentido em que é o falar que implica projeção de gotículas ou aerossóis, tanto mais longe quanto maior a força com que forem expelidos), Mi (minutos, tempo de exposição superior ou inferior a 5-15 minutos), Mo (mofo ou ventilação, evitar espaços fechados e mal ventilados, optando por ou privilegiando as atividades de grupo ao ar livre) e Mu (multidão, desde a alta a baixa ocupação do espaço). O risco de transmissão nas atividades de grupo variará desde baixo (apenas 1 ou 2 presentes), até elevado (4 ou 5). Será fácil concluir que em espaços de ensino, os fatores de risco se acumulam, gerando uma maior probabilidade de eventual contágio.

A questão tem vindo a preocupar decisores em vários países do mundo. Um estudo do Instituto Nacional de Doenças Infeciosas do Japão citado pelo PÚBLICO sugere que “o risco de contágio em espaços fechados é 19 vezes maior do que ao ar livre”. Nos Estados Unidos, Anthony Fauci, chefe do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, recomenda que as escolas ofereçam o maior número de possibilidades de atividades ao ar livre, desde as aulas, o recreio e o almoço. Na sequência, o mayor Bill de Blasio decretou a possibilidade de 800 escolas passarem a dar aulas fora dos edifícios, uma parte nos recreios, nos parques e jardins públicos e em ruas temporariamente fechadas ao trânsito.

Janette Sadik-Khan, antiga comissária do Departamento de Transportes de Nova Iorque (NI), declarava em entrevista ao The Guardian termos de repensar a organização das nossas cidades enquanto durar a covid. O espaço público, os espaços ao ar livre e as ruas fechadas ao trânsito poderão vir ser a alternativa para conseguirmos assegurar o regular funcionamento das atividades quotidianas, garantindo a distância física e a proteção necessárias. Muitas dessas respostas poderão ser feitas com ações de baixo custo, rápidas e de efeito imediato.

Curiosamente, esta solução não é nova. No início do século XX, em resposta a um surto grave de tuberculose, a cidade de NI passou a oferecer as «”ulas ao ar livre e até em terraços ou em barcos abandonados”. Em dois anos, foram criadas mais de 65 escolas ao ar livre nos EUA com resultados escolares positivos no controle da doença. Estas open-air schools inspiraram-se em experiências realizadas na Alemanha e Bélgica em 1904 e conciliavam uma dimensão médico-pedagógica com o desejo de “aproximar o ensino da natureza para o tornar mais prático, aliando a atividade física ao desenvolvimento intelectual e emocional”, questão central do 1.° Congresso Internacional de Escolas ao Ar Livre realizado em Paris no ano 1922. A vacina B.C.G. só três décadas depois teve a sua aplicação em larga escala.

Em Portugal, o assunto do regresso às aulas tem merecido natural preocupação, mas as respostas que se discutem são as convencionais. O agrupamento de Escolas de Silves é uma das poucas exceções no qual os “alunos vão ter, dois dias por semana, aulas ao ar livre, no espaço exterior da escola”. O diretor sublinha um potencial óbvio, mas normalmente esquecido – “temos espaços verdes e sombra e um excelente clima o ano todo, pelo que isto nos vai permitir de forma lúdica e pedagógica evitar que os alunos estejam permanentemente fechados na sala de aula.”

As cidades portuguesas infelizmente não estão organizadas para a flexibilidade de uso citada nos exemplos internacionais. As funções e os edifícios funcionam de forma isolada e compartimentada, cada uma no seu lugar. Os espaços públicos – as praças, os jardins ou ruas – são, muitas vezes, os espaços sobrantes, desempenhando um papel menor na estruturação da vida comum e na ligação aos equipamentos coletivos, valorizando pouco o uso didático ou a interação social.

Os próximos tempos vão exigir aprendermos a viver numa proximidade regulada e isso implica ter de reinventar nas cidades a forma como organizamos no espaço e no tempo as funções do trabalho, do ensino, do lazer e cultura e da deslocação.

O momento delicado que vivemos pode ser uma oportunidade para virar a cidade do avesso, projetando, em algumas ocasiões, a sala de aula para o recreio, os telheiros e pátios interiores, os parques, jardins ou praças adjacentes ou próximas, garantindo o quotidiano das atividades em espaços bem ventilados, com baixa intensidade de ocupação, curta permanência e interações moderadas, indo ao encontro dos factores MaMeMiMoMu sugerido por investigadores de Oxford. Com uma vantagem suplementar: a radiação ultra-violeta destrói o coronavírus em minutos, mas não atravessa as vidraças da janela da escola.

Esta proposta deve ser entendida como um apelo à reflexão dirigido a decisores, urbanistas, comunidade educativa e demais cidadãos. No caso das escolas, mais do que uma mera re-organização no espaço e no tempo, sugere-se um conjunto de novas práticas pedagógicas que enquadrem as aprendizagens ao novo contexto espacial. Quanto ao espaço público, exigem-se instrumentos de planeamento que lhe confiram uma nova centralidade e que o capacitem com o equipamento – utilizável com conforto, protegido do vento e da chuva – adequado a um bom desempenho para as novas funções. Não será tarefa fácil, mas a alternativa presencial ao ar livre será certamente melhor que a solução online, confinada e à distância.

José Carlos Mota.

* Docente da Universidade de Aveiro.

 

 

 

 

 

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