Aveiro / Dr. Orlando de Oliveira: Pedagogias e ironias

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Liceu de Aveiro (atual escola secundária José Estêvão).
Comercio 780

Há muito tempo que não ia ao Largo da Apresentação. Quando vi o grande edifício que, agora, faz esquina com a rua de D. Jorge de Lencastre, lembrei-me da vivenda que lá tinha existido. E as lembranças, como é consabido, são como as cerejas: puxa-se por uma e nunca se sabe quantas vêm atrás.

Por Diamantino Dias *

Nessa casa, viveu o Dr. Orlando de Oliveira, cuja acção foi muito importante para que fosse instituída uma Universidade em Aveiro. No que me diz respeito, em 1967, quando era Reitor do Liceu Nacional de Aveiro, não havendo candidatos com curso específico, em número suficiente, convidou-me para dar aulas de Educação Física, o que fiz, durante uns tempos, tendo como mera habilitação diplomas de treinador de Andebol.

Em meados dos anos cinquenta, o Dr. Orlando já tinha sido meu professor de Ciências Naturais, disciplina da alínea F, no sexto e sétimo anos que, na época, eram os últimos. Explicador de eleição, como classificador era, porém, um unhas de fome terrível. Chegava ao ponto de diminuir as notas dos exercícios escritos, por causa da qualidade da ortografia.

Era, também, uma pessoa irónica e punha em prática essa faceta sempre que tinha oportunidade. Tendo não só assistido a alguns desses casos, mas também participado num deles, lembrei-me de escrever este artigo, cuja parte substancial consistirá na descrição desses episódios da minha vida de estudante liceal. Como é evidente, omitirei, excepto no caso em que fui a vítima, o nome dos meus colegas.

Numa aula teórica, foi-nos comunicado que, na próxima aula prática, teríamos que levar um frasquinho de água com clamidomonas, para observarmos esses seres unicelulares ao microscópio.

Como sabíamos que essa era a designação de uma alga verde que incluía o predito ser, muitos de nós, eu incluído, fizemos as colheitas no lago do Parque, cuja água era esverdeada, e, para surpresa geral, clamidomonas era coisa que lá não existia. Um dos meus colegas, quando estava, de manhã cedo, a fazer a barba — note-se que, nessa altura, não havia máquinas eléctricas para o efeito –, lembrou-se que se tinha esquecido de ter ido apanhar as clamidomonas; e aparecer na aula sem o líquido, implicaria uma falta de material, logo injustificável. De repente, veio-lhe à ideia: “Encho o frasco com a água do lavatório e ninguém me pode acusar de, no charco onde colhi o líquido, não haver o raio das algas.”

Durante a aula, pusemos, com as pipetas, umas gotas nas lâminas, colocámos as lamelas e começámos a fazer as observações. Entretanto, o Dr. Orlando começou a espreitar nos vários microscópios e, quando chegou ao da preparação feita com a água ensaboada da barba, disse, com um ar muito sério, como era seu hábito:

“Venham todos ver. Esta colheita foi feita num rio onde não havia clamidomonas, mas pelo qual se transportavam troncos de árvores.”

Então não é que o meu colega se tinha esquecido que a água tinha os pelos da barba que, ampliados umas dezenas de vezes, eram cá uns barrotes!
Outra com microscópios. O que estava em análise era a estrutura das folhas de plantas, as quais, depois de destrinçadas com a ajuda de agulhas, eram ampliadas. As minhas agulhas, que ainda guardo, tal como o bisturi e a pinça, foram feitas com velhas agulhas de “crochet” afiadas ao esmeril.

A certa altura, ouviu-se uma voz: — “Senhor doutor, a minha folha está a mexer-se!”.

O Dr. Orlando aproximou-se, deu uma olhadela e exclamou: — “Esta preparação vai ser fixada e enviada para a Academia das Ciências, dado que o vosso colega fez uma descoberta importantíssima: uma planta, cujas folhas se movem. Venham todos ver.”

E fomos. Tratava-se dum micro-lagarto, meio desfeito pelas pinças, a contorcer-se nas vascas da morte.

Aula de Mineralogia.
Pergunta: — “O que é a mica?”.
O respondente, que era um tanto ou quanto gago, custou-lhe a arrancar, mas, depois, disse de um só fôlego: — “É um ortosilicato alumínico de ferro.”
Nova intervenção do professor: — “Conheces a história do fulano a quem perguntaram se ele era capaz de dizer três disparates seguidos?”
— “Não, senhor doutor.”
— “Pois ele era tal e qual como tu, e disse: Nã sará fácel…” .

A chamada era sobre Botânica.
E o aluno, não sendo dos melhores, era especialista no desenrascanço; por exemplo, numa aula de Geometria Descritiva, tendo-lhe sido pedido para definir “Plano”, respondeu:
— ”É um círculo com raio infinito.”
— “Não é essa a definição do livro.” — Contrapôs o mestre.
— “Mas é a minha e está certa, senhor doutor.”
Voltando à chamada.
— “Onde é o “habitat” das algas?”
— “É nas paredes das casas.”
— “Tens a certeza?”
O meu colega topou logo que se tinha enganado, que tinha confundido algas com fungos, mas então tentou entrar no jogo em que era especialista; todavia, mal sabia ele com quem se tinha metido.
– “Senhor doutor, nas paredes das casas húmidas.”
— “Não se pode dizer que esteja certo, mas está melhor.”
— “Senhor doutor, quando as casas são ao pé da água.”
— “Ainda não está bem, mas vais no bom caminho.”
— “Senhor doutor, quando a maré enche, ficam debaixo de água.”
— “Continua a melhorar, mas não se pode dizer que seja correcto.”
— “Ó senhor doutor, o “habitat” das algas é a água.”
— “Estás a ver? Tu estás como o outro a quem perguntaram de que cor era uma pedra.”
— “É preta.”
— “Não quero dizer que estejas totalmente errado, mas não me parece que seja preta.”
— ”Vendo melhor, é cinzenta escura.”
— “Está melhor, mas não me parece que seja essa a cor.”
E o Dr. Orlando continuou a contar que o cinzento foi clareando, até chegar ao branco, rematando:
— “Tal como tu: esse indivíduo disse que o branco era preto e tu disseste um disparate do mesmo quilate.”

E para terminar uma passada comigo. Tinha acabado a aula de Trabalho Práticos, que durava noventa minutos, em que tínhamos utilizado microscópios e eu vinha a sair da sala, quando o Dr. Orlando me chamou:

— “Diamantino, podes fazer uma coisa?”
— “Com certeza, senhor doutor.”
— “Veste a bata.”
A minha bata branca era com botões de apertar atrás, pelo que, muitas vezes, até pedia ajuda a um colega; mas, como já não estava mais ninguém na sala, tive que me safar sozinho.
— “Agora, vai lavar e desinfectar as mãos.”
— “Já lavei e desinfectei, senhor doutor.”
— “Então, vai pôr o teu microscópio dentro da caixa, porque te esqueceste. Depois, podes ir embora.”

No caminho até ao pátio do recreio, chamei-lhe todos os nomes possíveis e imaginários, mas para dentro. E então não é que, quando lhe contei esta história, muitos anos mais tarde, ele ainda se lembrava desse incidente!

Mais informação sobre Orlando Oliveira.

* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura).

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