Os meninos e os garotos

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Cine-Teatro Avenida (foto do site restosdecoleccao.blogspot.com).
Comercio 780

No meu tempo, havia dois tipos de rapazes: os meninos e os garotos. Os meninos brincavam em casa deles ou dos amigos, com jogos de tabuleiro, por exemplo, o “Assalto ao Castelo”, o “Jogo da Glória” e o “Monopólio” ou brinquedos caros comprados nas lojas da Avenida.

Por Diamantino Dias *

Os garotos jogavam, na rua, à cabra cega, à macaca, a saltar o eixo e à corda, ao agarrar, à bandeira, ao esconder, ao esconder calote, à malha (que podia ser de pedra ou de ferro), ao pataco (usando moedas antigas), ao berlinde (havia de vidro, mas os melhores eram os metálicos de que eram possuidores os que tinham familiares a trabalhar em oficinas de automóveis), ao pião (na maior parte das vezes, eram monas — piões com grandes e fortes bicos cónicos que causavam estragos nos outros, quando lhes acertavam), à bilharda (espécie de “baseball”), ao futebol e, às vezes, à porrada.

Esta listagem não se pretende exaustiva e dela poderiam constar as corridas de sacos, as lutas de tracção à corda e outras actividades lúdicas menos frequentes. No que respeita à malha, ao pataco e ao berlinde, não se jogava de borla e as moedas utilizadas eram ou bilhetes de caminho de ferro (o mais valioso era o de ida e volta a Lisboa) ou botões (o valor dependia do tamanho, do número de buracos e dos enfeites, pelo que os mais caros eram os de casaco comprido de senhora).

Os garotos jogavam, também, jogos de guerra, em função dos filmes que passassem nas “matinées” dominicais, capítulo este que abordarei mais adiante, mas a maior parte do seu armamento era fabricada pelos próprios. Para a espada, bastava uma ripa ou uma cana, se possível da Índia, muitas vezes surripiada do canavial do Parque; normalmente, amarrava-se, de um dos lados e de través, um pequeno bocado de pau ou cana para proteger a mão e, quando não havia essa guarda, enrolava-se o lenço na mão, para a proteger de alguma espadeirada.

Pistolas havia-as de várias espécies: as melhores, mas muito raras, dado o seu preço, eram metálicas e de fulminantes; a seguir, as de barro preto, compradas na Feira de Março; quem não tinha nenhuma destas, utilizava um pau que formasse um ângulo mais ou menos recto; nestes dois últimos casos davam-se tiros vocais; à falta de melhor, a mão fazia de pistola, sendo o dedo indicador o cano e o tiro um estalo dado com o dedo médio e o polegar.

Os arcos e flechas confeccionavam-se com varetas de guarda-chuva ou raios de bicicleta e cordéis. Usavam-se, também, tubos de sopro lança-projécteis, para atirar não só bagas, mas também alfinetes. Havia fisgas para meninos e garotos. As primeiras tinham um cabo de madeira envernizada, dois cordões elásticos e um receptáculo em cabedal para o projéctil; eram utilizadas nos jardins ou quintais dos possuidores. As segundas faziam-se com um pequeno galho de árvore resistente em forma de forquilha, dois elásticos, normalmente, cortados de câmaras de ar de bicicleta, e um bocado de um tecido rijo para a pedra; eram feitas pelos próprios, familiares ou amigos.

Os garotos não usavam a fisga como arma nos seus jogos de guerra, pois tinham noção, mais ou menos consciente, do seu grau de perigosidade. Serviam-se dela para atirar aos pássaros, às vezes, no Parque, às escondidas do senhor Adriano, que era o guarda, ou para tiro ao alvo. Eu tive, também, uma com o cabo feito com parte de um selim de bicicleta e, quando fiz o 2º Ano do Liceu, os meus pais ofereceram-me uma espingarda pressão de ar, Diana modelo 25, com cano estriado, que só usava no quintal dos meus padrinhos e nas férias de Setembro, passadas na aldeia dos meus avós paternos.

No que respeita às comunicações, os garotos já dispunham de telefones portáteis, constituídos por duas caixas de fósforos unidas por uma linha ou um cordel. Nos mais sofisticados, as caixas de fósforos eram substituídas por tampas metálicas de latas da graxa dos sapatos. As mensagens enviavam-se através de vibrações transmitidas com um dedo ao fio de ligação bem esticado e, para nós, eram perfeitamente entendíveis.

No sector dos transportes, os meninos montavam cavalos de papelão com quatro rodas, que tinham de ser puxados com uma corda, ou pedalavam em triciclos ou automóveis. Os garotos cavalgavam um pau com um fio amarrado a fazer de rédeas, empurravam carros de mão encostados ao ombro (um pau de vassoura com roda de madeira numa extremidade e uma curta travessa para apoiar as mãos, à qual se chamava o guiador) ou desciam ladeiras em carros de rodas (um estrado com quatro pequenas rodas, podendo as duas da frente, nos topo de gama, serem móveis para se poderem dar curvas.

Existiam grandes arcos de madeira para os meninos e metálicos de vários diâmetros para os garotos que, muitas vezes, faziam, também, rodar, à falta de melhor, aros de bicicleta. No que concerne aos “drones”, já se fabricavam vários modelos. Para os mais pequenos e destinados a vôos curtos e a baixa altitude, bastava uma folha de papel; procedendo-se a várias dobragens ou a simples vincos, fazia-se, respectivamente, um avião de passageiros ou um asa delta. Já os maiores, com os quais se pretendia atingir grandes e duradouras altitudes, construia-se uma estrutura com canas, a qual era revestida de papel de cores, acrescentando-se-lhe uma cauda feita com um longo fio, ornado com laçarotes policromos do mesmo papel. Os dois modelos eram conhecidos pelos nomes de Papagaio e Estrela.

Eu fiz parte das duas categorias de rapazes. Até ir para a Escola Primária, com sete anos feitos, fui menino e só saía de casa acompanhado por uma pessoa de família. E tive brinquedos dados pelo Menino Jesus; nessa altura ainda não havia Pai Natal. Os mais caros – um grande cavalo de papelão, um automóvel de pedais e um triciclo, em que os meus filhos chegaram a pedalar – apareceram na chaminé dos meus padrinhos (era um Menino Jesus com vencimento de capitão, posto do marido da minha madrinha e a quem sempre chamei padrinho, enquanto que, à época, o meu pai ainda só era sargento). Depois comecei por vir brincar com os garotos da zona para defronte de casa, de seguida para o vizinho Largo das 5 Bicas, mais tarde consegui autorização para ir até ao Parque. Por fim o meu limite passou de territorial a temporal e era assinalado pelo toque de recolher do Regimento de Infantaria 10.

Já na minha fase de garoto, brinquei em casa de dois condiscípulos e amigos. Um deles, era meu primo afastado, o André Ala dos Reis, poderia ter vindo a atingir um lugar de grande relevo no contexto da cultura aveirense se não tivesse morrido prematuramente. Fazia-nos projecções de cinema com uma maquineta rudimentar e com fotogramas que arranjava no Teatro Aveirense. Um pequeno parêntese para explicar, aos mais novos, como era possível arranjar esses fotogramas.

Durante as sessões cinematográficas, era frequente a película partir-se e o projeccionista tinha que cortar alguns fotogramas, que iam para o lixo, a fim de proceder à colagem. Assistíamos, também, a um cinema mais artesanal: o projector era uma caixa de sapatos, com um buraco rectangular num dos topos a fazer de ecrã; a bobine, um casquilho de um novelo de linhas; o filme, a banda desenhada de um jornal diário, cujos episódios eram colados, sequencialmente, uns aos outros; a locução era feita pelo anfitrião. Lembro-me do “Mecano”, percursor do “Lego”, com que brincávamos e que me encantava. Confesso que, mau grado todos os esforços e promessas que fiz, nunca consegui que nenhum dos meus dois Meninos Jesus me oferecesse um. Às vezes, jogávamos à espada, com armas curtas de madeira e escudos de papelão feitos pelo André, no jardim que dava para a rua Gustavo Ferreira Pinto Basto. Mas na maior parte dos casos as nossas brincadeiras eram mais próprias de meninos.

O outro condiscípulo veio a ser célebre e não só a nível nacional, porquanto foi guarda-redes de várias selecções nacionais de hóquei em patins e campeão da Europa nos anos cinquenta. Uma dessas equipas tinha o 5 inicial constituído por quatro jogadores do SNECI de Lourenço Marques e um defesa do Benfica (Moreira, Casimiro, Adrião, Velasco e Bouçós). O Alberto Moreira era filho do capitão Ribeiro da Cunha que, quando regressou de Macau, onde foi comandante da PSP durante a Segunda Grande Guerra, e, até partir para nova comissão de serviço em Moçambique, residiu durante uns três anos numa casa, que ainda existe, ao cimo da ladeira do hospital, onde esteve a CERCI durante muito tempo. À data, tinha mais três filhos, dos quais dois já morreram e um mora em Eixo. O meu amigo, por ser o mais novo, era conhecido por Bebé Cunha. Reside na Costa de Caparica. Na sua casa, jogávamos dois jogos de mesa, o “Mahjong” e o “Monopólio”, mas a maior parte das brincadeiras eram do género, como agora se diz, radical. Cito alguns exemplos. Descer as escadas dentro de uma bacia de esmalte, dando a curva do patamar com a ajuda duma pesada na parede.

Jogar à espada com armas autênticas sacadas às escondidas, pelo Bebé Cunha, da sala de armas do pai, no terreno vizinho, onde é hoje a zona ajardinada da Baixa de Santo António. E algumas cortavam mesmo a sério, pelo menos as canas. Felizmente, nunca nenhum dos participantes, e éramos vários, se aleijou e, quando o dono soube, acabaram-se os combates. Chegou a ser programada uma guerra à pedrada: construíram-se as trincheiras de uma das quais fazia parte a grande caixa de madeira de um projector de cinema; mas, já não sei porque razão, talvez os adultos tivessem sabido, dado que o campo de batalha era do lado de trás da casa, as hostilidades não foram abertas.

Vou terminar este capítulo dando a conhecer que o Bebé Cunha me proporcionou os meios e a ocasião para eu ter batido, quase de certeza, um mínimo mundial, acontecimento que a seguir descrevo. Ele tinha uns patins daqueles de adaptar aos sapatos e, um dia, fomos com o Martins – que viria a ser o melhor hoquista aveirense de todos os tempos –, para o vizinho e saudoso rinque do Parque, para o Bebé Cunha nos ensinar a patinar. O Martins calçou os patins, deu dois ou três passos, caiu, levantou-se e assim continuou durante um bocado sem nunca se aleijar. A seguir eu adaptei os patins e, mal me comecei a pôr em pé, escorreguei para a frente, bati com a nuca no chão, vi tudo a andar à roda, sentei-me atarantado no cimento, tirei os patins e jurei que nunca mais me poria em cima de tal geringonça, jura essa que cumpri até hoje, mau grado me ter equipado, muitas vezes, no balneário onde estava o material do hóquei dos Galitos, com os patins a olharem para mim, a desafiarem-me para uma experiência.

Seguidamente, ocupar-me-ei das diversões, começando pelo futebol. Os meninos, que tinham familiares que iam à bola, acompanhavam-nos e assistiam aos jogos, junto deles, na maior parte dos casos, sentados na bancada. Os garotos, que tivessem pessoas na família ou adultos amigos que fossem ver o Beira Mar, iam com eles. Os outros, entre os quais eu me incluía, iam para junto das portas e, quando viam um homem conhecido ou desconhecido sem vir acompanhado por uma criança, dirigiam-se a ele e pediam-lhe “Meu senhor, leve-me consigo, por favor”. Se o pedido fosse aceite, e era, normalmente, davam-lhe a mão ou agarravam-lhe o braço e os porteiros deixavam-nos entrar, apesar de nos conhecerem de ginjeira. Íamos para o peão, para o lado do ataque do Beira-Beira, ao intervalo mudávamos, fazer claque e aprender, com os mais velhos, a ser “bons desportistas” ou, melhor dizendo, fanáticos adeptos do clube da casa.

Assim, os nossos nunca estavam “offside”, os outros estavam sempre fora de jogo; os jogadores do Beiramarzinho eram uns mouros de pancada e os adversários uns sarrafeiros; a bola vinha sempre bater na mão dos aveirenses, enquanto que os visitantes metiam, propositadamente, a mão à bola. Aprendíamos, também, a chamar nomes aos inimigos e, especialmente, aos árbitros que eram considerados como pertencentes não só a uma quadrilha, já que eram todos uns ladrões, mas também a uma irmandade, porque eram filhos da mesma mãe. E é dotados só com estes conhecimentos e princípios básicos que muitos dos desportistas de bancada e TV do futebol têm vindo não só a analisar os jogos, mas também a proclamar que a verdade desportiva deve ser, intransigentemente, defendida. Desde que o seu clube ganhe, acrescento eu. No final do jogo, por vezes, ainda vínhamos pôr em prática as habilidades dos nossos ídolos, Zé de Pinho, Maximiano, Petrak e muitos outros.

Nas 5 Bicas dispúnhamos de três campos. Se fôssemos poucos, jogávamos mesmo no Largo, para a mesma baliza: o portão da garagem do senhor Lopes, que já desapareceu. Se desse para duas equipas, íamos para a rua do Quartel; os automóveis eram raríssimos, carros de bois, aos domingos, não havia, e se aparecesse alguma bicicleta, até dava jeito para proteger a bola durante um contra-ataque rápido, que agora se chama transição. Os encontros internacionais, contra as Pombinhas ou a Sé, disputavam-se na Travessa das Olarias, actual Travessa de São Martinho, onde o trânsito era praticamente inexistente. Eu fui sempre um aselha com os pés – joguei basquete e andebol –, mas tinha uma vantagem: os meus pés calçados metiam respeito aos muitos que jogavam descalços ou porque não tinham sapatos ou, então, não os queriam estragar e sofrer as consequências quando chegassem a casa.

A nossa outra diversão de fim de semana era o cinema, onde os meninos iam acompanhados por familiares, ao lado dos quais se sentavam nos lugares correspondentes aos respectivos bilhetes, enquanto que os garotos entravam aplicando a supracitada técnica do “Meu senhor, leve-me consigo, por favor”, indo ocupar as primeiras filas da plateia. Eu, ao contrário do que me acontecia no futebol, não precisava de recorrer a este pedido, na medida em que o marido da minha madrinha, no que respeitava ao Teatro Aveirense, recebia, às vezes, uns bilhetes, porque tinha uma ligação ao Socorro Social.

Foi lá que vi a “Branca de Neve e os Sete Anões” e o meu primeiro filme a cores “O Terror dos Sete Mares”. Mais tarde, no Cine-Teatro Avenida, inaugurado no fim de Janeiro de 1949, com o filme “Não há rapazes maus”, a que assisti com a minha mãe e a minha madrinha, o meu padrinho conhecia um bilheteiro — quem nos diria que eu me viria a casar com uma sobrinha dele — que me proporcionava a entrada. A garotada fazia claque pelos seus heróis, avisando-os dos perigos (“Tarzan, olha o crocodilo debaixo de água atrás de ti”, “Errol Flynn, tem cuidado que o gajo está atrás da porta”). E aplaudia com gritos e salvas de palmas, quando o Rei dos Macacos (Johnny Weissmuller) dominava a fera ou um “cowboy” (John Wayne, Gary Cooper, Randolph Scott) sacava dos “colts”, por vezes, pareciam metralhadoras, e mandava ter com o Manitu uma data daqueles peles vermelhas selvagens que teimavam em querer continuar a caçar bisontes nas terras onde os seus antepassados viviam há séculos, impedindo que os colonos caras pálidas, nascidos na Inglaterra, na Irlanda, na Escócia, na França e noutros países, as ocupassem para lá implantar a civilização europeia que todos haveria de fazer prósperos e felizes.

Quando, nos anos sessenta, setenta, começaram a aparecer os filmes pró-índio, já eu me sentava nas filas para adultos da plateia, ou seja, falando sem artifícios de linguagem, já possuía conhecimentos que me permitiam ver a grande Epopeia Americana e outras similares de uma forma crítica, logo, diferente, em que, muitas vezes, os valores se invertiam em relação aos do passado. Voltando aos anos quarenta, após este salto temporal e consequentes considerações que não se enquadram com o tema deste escrito, mas que não considero descabidas ou inoportunas. Se estivéssemos de férias ou se tivéssemos tempo, na semana após os filmes, os nossos jogos de acção baseavam-se no tipo de história que tínhamos visto: polícias e ladrões, capa e espada ou “cowboys”. Os locais ou eram as nossas ruas ou, para a malta das 5 Bicas, quando convivia com miudagem doutros bairros, a Selva, onde é hoje o Fórum, e a Quinta do Cadoro que tinha ocupado a zona do actual Bairro da Misericórdia, no Cabouco, e era assim chamada, por ter pertencido ao Barão de Cadoro, bisavô do poeta Manuel Alegre.
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Vou terminar mais este capítulo das minhas memórias, referindo-me a um assunto que, ultimamente, tem vindo a ser tratado pelos meios de comunicação. Quando estava a congeminar este escrito, vinham-me à memória as imagens dos meus antigos companheiros. E notei que havia muito poucas crianças gordas, a quem, sem maldade, apelidávamos de buchas. E isto porque – não é só a minha opinião, é consabido – para além do contexto económico e social não ser nada propício, ao contrário do que acontece hoje, à obesidade nesta classe etária, muito especialmente no que respeitava aos garotos, havia uma outra razão muito importante para que não houvesse problemas com excesso de peso: nós tínhamos uma vida muitíssimo mais activa.

(Escrito originalmente a 17 de Novembro de 2019)

* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura)