O Senhor Vasconcelos

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Avenida Lourenço Peixinho, Aveiro (anos 70).
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Arnaldo Vasconcelos nasceu em Viseu. Foi primeiro sargento e primeiro fagote da Banda da Guarda Nacional Republicana em Lisboa. Passou uma boa parte do resto da vida em Aveiro, dirigindo várias Bandas regionais e copiando partituras para arredondar a pensão da reforma, num tempo em que não havia fotocopiadoras.

Por Diamantino Dias *

Para além de ser um super-contador de anedotas, tinha piada, o que não só não é a mesma coisa, mas é também muito mais raro e muitíssimo mais difícil. Tive a oportunidade de conviver frequentemente com ele e vou contar, não nenhuma das suas saborosas anedotas, em que, muitas vezes, dada a sua idade, se permitia assumir o papel de personagem principal, mas algumas situações a que assisti e, até, participei, se bem que como personagem secundaríssima.

Até aos anos 70, a Câmara Municipal instalava um Posto de Turismo no Recinto da Feira de Março que se realizava no Rossio. À tarde, depois de sair do serviço, eu costumava ir à cervejaria do meu amigo Augusto beber um fininho com tremoços e amendoins e cavaquear com amigos.

Um dia, encontrei o senhor Vasconcelos, que me convidou para a sua mesa.
– Senta-te aí, meu menino. Vamos lá a ver como estamos de anedotas.
E começámos a desbobinar, porque, à época, eu era, também, um conhecido especialista na matéria. Eis senão quando, chegou um comum amigo, especializado na ciência do engate, mas que, tendo acabado de frequentar um Curso da Cristandade, em Mira, atravessava um período de missionarismo com que pretendia levar para o seu rebanho ovelhas perdidas e ronhosas, classificações em que nos incluía.

Depois de uma longa peroração, confessou:
– Eu reconheço que fui um grande pecador, pelo que, por vezes, castigo a minha carne. Ainda esta manhã, quando estava a tomar o pequeno-almoço, peguei na cafeteira, sem me lembrar que poderia estar muito quente, mas não tirei a mão, para castigar a carne.
– Mas que raio de culpa tem a carne de ser comandada por um espírito burro?
Foi a resposta imediata do senhor Vasconcelos, ficando o neo-mártir militante com um sorriso amarelo e saindo nós. Na curva do Rossio, disse o meu amigo:
– Vamos ter sermão e missa cantada. Vem ali o amigo Seis em Ponto. Tratava-se do Padre Fernandes, Prior da Vera Cruz e amigo de longa data do senhor Vasconcelos, o qual, após os cumprimentos da praxe, perguntou:
– Então como vai essa bizarria, amigo Vasconcelos?
– Isto não está nada bem, amigo Padre Fernandes. Tenho andado cá com uma tosse maligna, sempre com o pingo no nariz… Estou convencido que não duro até à Páscoa.
– Qual tosse qual quê. O senhor tem uma saúde de ferro, há-de enterrar-nos a todos.
– Isso diz o senhor, mas eu faço contas de, lá para o Verão, já estar a tocar fagote, na Banda do Inferno.
– Esse pessimismo nem parece seu, que é uma pessoa não só bem disposta, mas também especialista em alegrar os outros com os seus ditos e histórias, faceta esta que Deus não deixará de ter em atenção, reservando-lhe um lugar de solista, na Orquestra Celestial, porquanto alegrar os tristes é uma virtude que muito agrada a Nosso Senhor…
– Amigo Padre Fernandes, agradeço-lhe muito as suas palavras, mas não perca o seu tempo, porque estivemos agora os dois com um dos seus caixeiros viajantes, que já nos vendeu a mercadoria toda.
– O senhor Vasconcelos é um brincalhão. Tem sempre uma graça para tudo, mas não me põe zangado consigo e sabe que sou seu amigo. Para lho provar, vou fazer-lhe um convite e uma surpresa: no domingo, quer vir passear comigo?
– Onde? À Avenida?
– Não, à minha terra. Chegou hoje o papelzinho vermelho. (Cor das antigas cartas de condução).
– Obrigado, não posso, tenho ensaio da Banda de Vale de Cambra. Mas aproveite bem o popó. Vá gozando este mundo e impingindo o outro aos seus paroquianos.
Despedimo-nos e, quando entrámos na Feira, disse-me:
– O Cana da Índia não se zanga comigo, porque sabe que falo bem dele a toda a gente e que lhe digo, a sós: vá dando tudo o que tem aos necessitados que ainda há-de morrer mais pobre do que eles.

Em 1959, ano em que se comemoraram duas importantes efemérides aveirenses – Milenário e Segundo Centenário da elevação a cidade –, o Posto de Turismo foi instalado na Avenida Dr. Lourenço Peixinho, perto do Automóvel Clube de Portugal, o que me obrigava a passar frequentemente junto à esplanada do antigo Café Trianon, um dos pousos habituais do senhor Vasconcelos. Um dia, chamou-me e perguntou-me:
– Olha cá, meu menino. Já reparaste na lata do fotógrafo?
– Porquê, senhor Vasconcelos?
– Então não estás a ver que ele está a fazer concorrência ao senhor Armando.

Abro um parêntese, para pôr os mais novos em situação. Na Avenida, do lado contrário ao Café, perto da estátua do Soldado Desconhecido, existia um estabelecimento de louça utilitária, pertencente ao senhor Armando Madaíl, onde hoje está instalado um Centro Comercial, junto ao qual tinha aberto o estúdio fotográfico do senhor Alberto Pires, que ostentava o reclame “A. Pires”, escrito em tubo de néon amarelo.
– Se eu estivesse no lugar do senhor Armando, encomendava um letreiro com a mesma letra e cor, dizendo: “e Chávenas”.
Amigo Vasconcelos, se ainda fosse vivo, não faltaria gente a quem dar o conselho de ir gozando este mundo e de ir prometendo um mundo melhor aos votantes.
Com que saudades recordo os tempos em que era tratado por menino… agora, que nem o meu neto já há muito não o é.

Diamantino Dias.

* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura)

 

 

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