Cartaz de livro.

Nasci e cresci no bairro da Beira-mar, um bairro típico da cidade de Aveiro, com uma cultura popular arreigada às suas tradições, o que me proporcionou vivências únicas e enriquecedoras desde que comecei a despertar para a vida.

Por Lucinda Rigueira *

As pessoas do meu bairro eram pessoas comuns, com vidas difíceis e sofridas. Quase todas com alcunhas, autênticas, de crítica fácil e, em momentos de aperto, sempre prontas a ajudar e partilhar.

Recordo as conversas acaloradas, o seu palavreado desinibido e o prazer que tinham em salgar a cavaqueira quando queriam ironizar ou espicaçar comentários, usando termos castiços e palavras maliciosas que eu, ao gracejar com eles nesta minha prosa, escrevo em “itálico” para destacar a argúcia de linguagem dessa gente simples.

Desde pequenina que me acostumei a gostar do falar cantado da minha terra, onde se trocava o v pelo b. Era um linguajar tão expressivo que, em muitos termos e expressões
os acentuo de uma forma que me leva a parecer ouvi-los das bocas das gentes que habitavam nas ruas estreitas e vielas do bairro onde nasci.

Talvez por serem pessoas muito enraízadas nos seus costumes, e quiçá, avessas à evolução fonética, tinham essa particularidade, na sua linguagem falada, pronunciarem os “b’s” ainda que, em termos ortográficos, adoptassem o português oficial.

Há quem advogue que esta troca fonética de “v” por “b”, tem a sua origem no ramo linguístico galaico-português. Aliás, no bairro a Beira-mar, a similitude com o galego ocorre também em muitas palavras e expressões comuns de que era exemplo disso dizer-se “auga” em vez de água.

Considero importante preservar as tradições por ser uma ponte que dá a conhecer a riqueza das raízes culturais do passado às gerações futuras. Ler o livro “Palabras co bento no leba” de Domingos Freire Cardoso, só me veio avivar mais na memória termos e expressões que conhecia e que há muito não ouvia.

Inspirada nessas memórias de infância quero recrear neste livro, de uma forma divertida e genuína, pequenos diálogos que nos transportem às conversas de rua dessa época com a mesma espontaneidade e linguagem desconcertante como eram ditas.

É bom ter presente que há décadas atrás, o sustento deste povo vinha da ria, do mar e do campo. Era tempo de muitos com pobreza e poucos com abastança. As historietas passam-se circunscritas à família e em cenários e lugares pequenos onde todos se conheciam. Com esta coletânea de historietas tão simples, procuro abanar memórias, deixando prazer a quem as lê, introduzindo termos, expressões, ditos e ditados, muitos deles em desuso… mas era assim o linguajar das gentes da minha terra, no tempo da minha infância.

Ao fazê-lo, procuro contribuir para a preservação da maneira tão característica do falar das minhas gentes, sendo ao mesmo tempo uma singela homenagem à cultura popular que tem no seu falar a autêntica expressividade do modo de viver deste povo tão genuíno e verdadeiro que me viu nascer.

Acarinho as minhas raízes, onde aprendi com pessoas simples mas com grande sabedoria de vida. Partilho os seus valores tal como acontece numa caldeirada de peixe, onde os sabores regados de maresia se misturam.

Aquela caldeirada especial feita num fogareiro na proa dum barco saleiro que, enquanto desliza nas águas cristalinas da ria, em dias de nortada, deixa essas águas salgadas salpicar o cozinhado, juntando-lhe o sabor das minhas memórias.

Acarinho as minhas raízes, onde aprendi com pessoas simples mas com grande sabedoria de vida. Partilho os seus valores tal como acontece numa caldeirada de peixe, onde os sabores regados de maresia se misturam.

Aquela caldeirada especial feita num fogareiro na proa dum barco saleiro que, enquanto desliza nas águas cristalinas da ria, em dias de nortada, deixa essas águas salgadas salpicar o cozinhado, juntando-lhe o sabor das minhas memórias

Com o propósito de dar mais autenticidade à forma como eram tagareladas as conversas e envolver o leitor nessa dinâmica, optei por privilegiar os “b’s” na narrativa escrita destas historietas.

Brincando com o abecedário conto histórias, exprimo emoções e recordo tradições. Também ele foi meu parceiro na magia de ensinar crianças a ler e a escrever o que me fez tão feliz. Chegavam pequeninas, quase assustadas e partiam confiantes, sabedoras da responsabilidade que cada um tem em não cortar com o passado e em serem capazes
de o fazer ser presente sempre que possível.

O que seria do futuro sem um passado na mão? Porque todas as letras são importantes, continuo a dar-lhes evidência de A a Z, que destaquei a negrito cada termo que inseri num conto específico.

Quero agradecer ao povo do meu bairro a vivência sã e animada que pulsava nas ruas onde vivi o que guardo com carinho nas recordações de criança. Hoje sou assim porque assim cresci. Bem hajam.

* Autora do livro “Conversas do falar que o Tempo me deixou…” (ler mais informação).

Convite.

Siga o canal NotíciasdeAveiro.pt no WhatsApp.

Publicidade e donativos

Está a ler um artigo sem acesso pago. Pode ajudar o jornal online NotíciasdeAveiro.pt. Siga o link para fazer um donativo. Pode, também, usar transferência bancária, bem como ativar rapidamente campanhas promocionais (mais informações aqui).