O autocarro das 18h35

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Autocarro da Moveaveiro (Arquivo).

Quando ouviu a campainha, ingeriu o comprimido SOS. Abriu a porta, mandou o senhor entrar, dirigiram-se à sala e mostrou os copos falhados. Convidou o Inspector a sentar-se num dos sofás individuais e instalou-se no duplo, tentando acalmar-se, falando do tempo e da pandemia, mas esperando, cada vez mais impacientemente, a chegada do autocarro das 18h35 que, para cúmulo, não chegou à hora.

Por Diamantino Dias *

Ester tinha herdado, da tia Virgínia, um serviço para doze pessoas – jarros, copos de água, de aperitivos, de vinho branco, de vinho tinto, taças de espumante e cálices de digestivos – que esteve guardado, durante alguns anos, no sótão, porquanto não só a fragilidade, mas também a beleza e, ainda, o elevado valor das peças de cristal da Boémia – constava que tinham sido trazidas, para Portugal, por uma família judia que fugira das SS hitlerianas – exigiam um móvel espaçoso e condigno que os reduzidos rendimentos do agregado familiar, em começo de vida, não permitiam adquirir.

Entretanto, o marido, Fernando de nome e Nando KO de merecida alcunha, tinha arranjado um gancho pós-laboral como treinador de boxe no ginásio do bairro e a Ester tinha sido promovida a escriturária de 1.ª classe, pelo que o orçamento do casal acabou por permitir, com a ajuda de um terceiro prémio do Totoloto, que se equipasse a sala comum, primeiro, com um terno de sofás e, depois, com a sonhada cristaleira.

No primeiro sábado após a chegada do móvel, Ester instalou o serviço nas três prateleiras iluminadas, requinte luminotécnico com que se pretendia vir a potencializar a inveja de futuras visitas, tendo sido decidido que, nesse domingo, o almoço seria comido, não na habitual mesa da cozinha, mas na sala junto à cristaleira.
Estavam a acabar a sopa, quando o Fernando disse, depois de ouvir o cuco do relógio:
– O da 1 e 5 vem adiantado.

O da 1 e 5 era o autocarro dos serviços de transportes urbanos, com paragem de zona junto ao passeio do apartamento, situado no rés-do-chão. Palavras não eram ditas e começou a ouvir-se um inusitado tilintar proveniente do móvel. Os copos, especialmente os cálices, bailavam uma animada dança de mau agouro, que se prolongou durante os quatro minutos em que o motor do autocarro se manteve a trabalhar, em ponto morto, para acertar a hora de partida.

Ao fim de uma semana e largas dezenas de autocarros, Ester averiguou que o tremelicar dos cristais tinha provocado estragos: dois cálices e um copo de vinho branco estavam nicados. Resolveu queixar-se sem, contudo, dizer nada ao marido, temendo o tipo de reclamação que o temperamento bilioso do peso pesado poderia provocar.

Na segunda-feira, pediu ao Chefe de Secretaria para entrar às 15h00 e dirigiu-se, após o almoço, à sede da empresa de transportes, onde foi recebida por um senhor muito simpático, miudinho e bem apessoado que lhe disse duvidar que as trepidações de um motor de um autocarro pudessem provocar, à distância de 3 metros e com uma parede de permeio, os anunciados estragos. Todavia, face à convicta insistência de Ester e, segundo ele, para provar à reclamante e cliente que, desde a privatização dos transportes, o pessoal se interessava a sério pelos utentes, ao contrário do que acontecia no tempo dos Serviços Municipalizados, prontificou-se a enviar alguém para averiguar a pertinência da reclamação.
– Pode ser hoje, às 17 horas?
– A essa hora não está ninguém em casa. Só se for depois das 6.
– Minha senhora, para lhe mostrar que isto, agora, é outra louça e apesar de ser já depois da minha hora de saída, eu próprio lá estarei, às 18 e15.
– Muito obrigada e até logo.

No caminho para o serviço, tentou comunicar a visita ao marido, mas as suas chamadas, repetidas insistentemente durante a tarde, nunca obtiveram resposta, mau grado não se ouvirem os sinais de interrompido ou desligado. A cada chamada não atendida, aumentava o seu nervosismo, porquanto não queria receber o Inspector sem o Nando estar presente. Chegada a casa, telefonou, mais uma vez, ouvindo, de imediato, o toque do telemóvel, pousado na mesa da cozinha. Chamou para a sede da empresa de transportes para tentar adiar a visita, tendo-lhe sido dito que o senhor Inspector estava ausente e incomunicável.

Em princípio, o Nando costumava passar por casa antes do treino, mas, nesse dia, tinha ido ao Porto, visitar dois clientes importantes. Com o passar dos minutos, Ester começou a sentir que a ansiedade ia atingindo um nível difícil de suportar, engolindo mais um ansiolítico, para além dos dois usuais, mas sem nenhum resultado sensível.

Quando ouviu a campainha, ingeriu o comprimido SOS. Abriu a porta, mandou o senhor entrar, dirigiram-se à sala e mostrou os copos falhados. Convidou o Inspector a sentar-se num dos sofás individuais e instalou-se no duplo, tentando acalmar-se, falando do tempo e da pandemia, mas esperando, cada vez mais impacientemente, a chegada do autocarro das 18h35 que, para cúmulo, não chegou à hora.

Então, Ester sentiu que começava a ouvir e falar com dificuldade, que a vista lhe faltava e desmaiou, debruçada no braço do sofá. O Inspector assustou-se, mas tendo participado, por dever profissional, num curso de primeiros socorros, pôs em prática os conhecimentos que julgou adaptados à situação. Deitou Ester no sofá, chamou o 112, tirou-lhe a máscara, desapertou-lhe o cinto e abriu-lhe a braguilha das calças, que estavam, na sua opinião, muito apertadas; tentou, sem resultado, tomar-lhe o pulso, pelo que lhe arregaçou a camisola de lã, encostou o ouvido ao peito da mulher que, entretanto, começava a vir a si, soltando gemidos e revirando os olhos, e sentiu que, de repente, levantava voo, vendo, a dois dedos dos seus, dois olhos a chispar e ouvindo uma voz furiosa gritar:
– Mas que raio é que se está a passar nesta casa?!
Antes que pudesse responder, foi atingido por um violentíssimo murro que o projectou contra a parede, felizmente, ao lado da cristaleira.
Acordou deitado no sofá, viu duas pessoas inclinadas sobre ele e a Ester aninhada nos braços de um calmeirão.
Um dos “Inemes”, identificado pelo estetoscópio pendurado ao pescoço, perguntou-lhe:
– Que diabo de coisa é esta?! Telefonam-nos a dizer que estava uma senhora desmaiada e, afinal, encontramos um homem sem sentidos e com a cara feita num bolo? Pode dizer-nos qual é o seu papel nesta história?
– Senhor doutor, eu só estava à espera do autocarro das 18 e 35!!!

* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura).

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