Nem tudo o que parece é

1978
Postais em defesa do jardim do Rossio.
Comercio 780

Obviamente não existe qualquer processo de “judicialização” da política em Aveiro, mas sim o recurso elementar e democrático de qualquer cidadão em acudir aos tribunais, para tentar defender os interesses elementares de uma comunidade em preservar o seu património e valores.

Por David Iguaz *

O presidente da Câmara Municipal de Aveiro (CMA), numa carta aberta publicada recentemente, manifestava a sua indignação contra o facto de a Câmara que a preside estar a ser alvo de múltiplos processos judiciais, situação “nunca antes vista no Município de Aveiro”.

Convém salientar que nunca antes em Aveiro, desde o 25 de Abril, nos deparamos com uma forma tão despótica de fazer “política”, própria de tempos passados, que contraria a necessidade de descarbonização e de melhoria da qualidade do ar, desvaloriza a segurança das pessoas e do edificado e, sobretudo, critica a participação activa dos cidadãos na vida municipal, recorrendo sistematicamente ao insulto e desqualificação em vez de apresentar argumentos sensatos e factuais.

É pertinente começar por clarificar que obviamente não existe qualquer processo de “judicialização” da política em Aveiro, mas sim o recurso elementar e democrático de qualquer cidadão em acudir aos tribunais, para tentar defender os interesses elementares de uma comunidade em preservar o seu património e valores.

Quando o Presidente diz, na sua carta aberta, que “erros teremos seguramente pela nossa natureza humana, mas nenhum que deliberadamente incumpra a Lei ou a Ética que honramos…” parece esquecer que, quando os erros são tão frequentes e repetidos por motivos de surdez dos seus praticantes, é difícil tomar o erro pelo mero erro, pois o quadro com que nos passámos a deparar é um de natureza humana leviana e incompetente. Convém sempre lembrar o estipulado no Artigo 6º do Código Civil: “A ignorância ou má interpretação da Lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas”.

Para concretizar, tão só, alguns aspectos que estão na base dos referidos processos judiciais, bastará citar o facto gravíssimo da elaboração de uma acta falsa de uma Assembleia Municipal, ou a caducidade de todo o processo de revisão do PDM, para não mencionar a não resposta, por escrito e em tempo útil, às sugestões/reclamações dos participantes durante o período de discussão pública, a que a Autarquia é obviamente obrigada por lei.

Como é sabido, foi submetida recentemente uma providência cautelar no Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro para impedir que um grande dolo pudesse advir da entrada em vigor do novo PDM, face às irregularidades descritas. O referido Tribunal entendeu, em recente sentença, que esse dolo (periculum in mora) não existiria, seguindo agora o seu curso um processo ordinário por via administrativa corrente, cujo desfecho final ainda está, obviamente, por decidir.

A principal preocupação neste processo foi acautelar os possíveis prejuízos que poderiam ocorrer para os munícipes no dia de amanhã, caso se comprovasse que, de facto, houve graves irregularidades nos procedimentos administrativos que culminaram na aprovação do novo PDM.

Voltando ao título deste artigo, e ao fenómeno das aparências, é pertinente referirmo-nos, a pareceres. Tem sido, por várias vezes, publicitado pelo executivo camarário, fazendo mesmo alarde de uma suposta transparência e integridade existentes na Câmara, um conjunto de pareceres ditos “favoráveis” de diversos organismos sobre a obra do Jardim do Rossio, tais como os da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região Centro (CCDR-C), da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) ou do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF).

No que se refere aos pareceres da CCDR-C e da APA, convém salientar que a CMA teve que dar resposta à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), na sequência de uma queixa apresentada pelo Movimento Juntos pelo Rossio, devido ao silêncio habitual da CMA após uma interpelação do Movimento Juntos pelo Rossio para que divulgasse os referidos pareceres.

Na realidade, esta terá sido a única razão que terá levado posteriormente a CMA a divulgar os pareceres e a referir-se aos mesmos como sendo todos favoráveis, procurando assim demonstrar uma suposta política de ética e transparência.

A verdade é que uma análise cuidada àqueles documentos permite concluir que aos pareceres, ditos “favoráveis”, acresce o adjetivo de “condicionado”, evidenciando uma vez mais a tentativa de deturpar a realidade dos factos. Na realidade, a APA conclui que a zona do Rossio é, de facto, inundável, recomendando “a adoção da cota de 2,3m como cota máxima de cheia conhecida por forma a garantir a segurança das pessoas e bens nos termos do nº 2 do art.º 40 da Lei da Água”.

Esse parecer insta a Câmara a apresentar um “estudo adequado no âmbito estrito da obra de que o empreendimento, tal como se encontra projectado, não é suscetível de pôr em risco a segurança de pessoas e bens, subscrito sob responsabilidade técnica para efeitos do nº 4 do art.º 62º do DL 226ª/31.05”.

A este respeito, é ainda pertinente lembrar que o relatório geotécnico encomendado pela própria CMA, que integra os estudos de base do designado Projecto de Requalificação do Rossio, estipula o seguinte: “O cenário geotécnico em presença, revelado pela campanha de prospeção, com um horizonte aluvionar constituído maioritariamente por solos de baixa consistência, com duas a três dezenas de metros de possança, submerso, é desfavorável e representa um exigente condicionalismo de projeto” (sublinhado nosso). A isto acrescem referências à necessidade de salvaguardar as edificações existentes de eventuais riscos associados à construção de uma obra subterrânea deste tipo.

Em relação ao parecer do ICNF, sobre o pedido de classificação do conjunto arbóreo do Jardim do Rossio feito pelo Movimento Juntos pelo Rossio, ficou patente a tentativa da CMA vir a público afirmar que o mesmo teria sido indeferido, quando afinal ainda se encontrava, e encontra, em fase de audição à própria Câmara, razão pela qual esta não chegou a divulgar o dito parecer.

De facto, se o fizesse, iria pôr a nu a mentira repetida vezes sem fim de que o ICNF indeferiu o pedido de classificação do Jardim do Rossio, o qual se encontra ainda, afinal, em análise por parte daquela instituição. O que estará em causa neste processo é o facto de, para além do valor identitário do Rossio de Aveiro, haver um conjunto de 25 plátanos centenários, cuja idade é questionada por alguns pela sua reduzida dimensão, mas da qual não restam dúvidas de acordo com as evidências recolhidas pelo Movimento Juntos pelo Rossio aquando da instrução do pedido de classificação e informação complementar entretanto enviada ao ICNF.

Para concluir, falta relatar a “omissão” da parte da CMA em mencionar que existe um parecer Não Favorável emitido pela Direção Regional da Cultura do Centro no inicio de 2019, sobre os resultados e forma de execução das escavações arqueológicas patrocinadas pela Câmara, no local onde esteve localizada a Capela de São João (1607-1910), em pleno Jardim do Rossio, com uma marcada ligação entre a religião e a vertente marítima da cidade e com comprovados enterramentos humanos, que violaram as mais básicas regras de metodologia de escavação, contrariando, inclusive, o estipulado no despacho de autorização dos trabalhos, e que resultou na perda de parte do espólio e na sua respetiva descontextualização.

Como se pode comprovar, pareceres não faltam, o problema reside em que, no seio da Câmara, nem tudo o que parece é.

* Movimento Juntos pelo Rossio.

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