Foguetes de São Gonçalinho

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S. Gonçalinho (foto de Bernardo Limas).

Felicidade tinha acabado de aparar a netinha, no final de um parto complicado da sua filha Deolinda, o qual só acabara bem porque contou com a ajuda da Quinhas Natividade, vizinha com treze filhos nascidos, dos quais sete se mantinham vivos.

Por Diamantino Dias *

Com a criança bem agarrada nos braços, ajoelhou diante da imagem de São Gonçalo, colada numa das paredes do casebre, e disse:

– Ó minha rica menina, meu anjinho, meu mais que tudo! Prometo-te que, com a ajuda do nosso São Gonçalinho, nunca te deixarei passar pelas misérias que eu e a pobre da tua mãe temos sofrido.

Felicidade, nada e criada na Beira-mar, tinha vindo ao mundo com um defeito numa perna, aleijão esse que lhe valera, desde muito cedo, ser crismada, inocente, mas cruelmente, pela criançada do Bairro, como a Dadinha Manquelitó.

Acabada a escola primária, foi aprender costura para casa da dona Zefinha do Adro, começando por tirar alinhavos, fazer recados e limpezas, mas revelando, cedo, a predestinação para a arte de bem agulhar. Esta habilidade valeu-lhe um convite para fazer calças, na alfaiataria do senhor Quim Teles, promoção que lhe permitia trazer mais uns tostões para casa da tia, que tinha tomado conta dela, após a falta da mãe, morta de tísica e de saudades do seu homem, emigrado à procura de melhor vida, em França, donde nunca mandara nem dinheiro, nem notícias.

A idade fizera de Dadinha uma cachopa jeitosa, com tudo no sítio, mas a perna marota não apropinquava namorados, mau grado todos os seus esforços, principalmente nos bailes dos Bombeiros Novos, onde ela, exímia bailarina, pois a dançar não mancava, levava o par a imaginar, em pé, aquilo que gostaria de praticar noutra posição. Os pedidos, preces e promessas a São Gonçalinho, afamado curandeiro de doenças de ossos e muito mais renomado Santo casamenteiro, não tinham tão pouco resultado: nem a perninha se tinha endireitado, nem nenhum rapaz a tinha namorado.

Até que um dia, o primo Felismino, a quem a mulher com quem vivia tinha trocado por outro, lhe começou a arrastar a asa. Era mais velho dezoito anos, mas ela já ia nos trinta e um e, farta de esperar, aceitou o homem enviado por São Gonçalinho, agradecendo-lhe com uma sacada de cavacas lançadas da platibanda da capela, no dia da Festa.

Casaram-se e procuraram ser felizes. Mas o Mino Falta de Ar, que tinha sido moço numa marinha da Corte de Cima, amanhada pelo marnoto Jaquim Quiço, e que, depois da tropa, arranjara emprego numa Cerâmica do Canal do Cojo, contraíra uma silicose que, após o ter impossibilitado para o trabalho, evoluíra para a tuberculose que o viria a matar.

Deste casamento nasceu uma filha, produto final de consanguinidades imemoriais, num bairro onde todos eram primos e primas. A Deolinda, pleonasticamente bonita, não fechava bem, no dizer do Tó Bocas, a tampa da caixa dos pirolitos. Não conseguiu acabar a escola primária, não sabia lidar com o dinheiro e falava num português q.b. com forte pronúncia renteleira.

A Dadinha Manquelitó, a quem os anos e a viuvez tinham mudado o nome para Ti Felicidade, começou a ter problemas, primeiro, com o enfiar da agulha, depois, com a certeza dos pontos e o manejar da tesoura. E não era só a vistinha, essa insuficiência foi sendo minorada com óculos da Feira dos 28; era também a tremura das mãos, por vezes incontrolável. Com o tempo, deixou de poder coser e cortar a direito, pelo que o patrão acabou, com muita pena, por a despedir. Começou a andar aos dias pelas casas, mas era tal a frequência das peças partidas que nenhuma senhora solicitava, já, os seus serviços.

A crise económica que assolava o País e a exiguidade dos proventos – pensões de viuvez e de invalidez calculadas a partir de contribuições diminutas a que os patrões não tinham conseguido fugir – não lhe permitiram manter, por muito tempo, a casita herdada da mãe, tendo de se alojar num alpendre, situado nas traseiras de um armazém de sal do Canal de São Roque, cedido pelo Ricardo Algibé, a troco da limpeza e guarda das instalações.

Um dia, Felicidade pensou que se tinha levantado um poucochinho o cerrado nevoeiro há muito caído sobre si: a Deolinda fazia limpezas, num bar da Praça do Peixe.

Todavia, dentro de pouco tempo, a névoa voltou a adensar-se. A Linda começou com desejos, enjoos e vómitos provocados por um ucraniano, grelhador no predito estabelecimento, anseios e incómodos esses que só passaram no fim do Verão, com o nascimento da netinha da Felicidade.

O Outono veio seco e o Inverno começou muito frio. Numa noite de Janeiro, Felicidade estava desesperada. A neta chorava de fome e frio; a filha, com gripe e cheia de febre, delirava palavras incompreensíveis. Tentou impedir a entrada do vento glacial, calafetando com trapos e papéis as frinchas do postigo e a soleira da porta, mas com o avançar da noite a temperatura continuava a descer. De repente, teve uma ideia – no armazém havia um aquecedor a gás. Foi buscá-lo, contudo, antes de o acender, pensou em voz alta:

– O que resolvo eu com uma noite de calor? Amanhã, a minha neta não deixará de ter fome, a minha filha será a mesma desgraçada e eu continuarei a não poder valer-lhes.

O rebentar de um morteiro lembrou-lhe que era a última noite das Festas de São Gonçalinho. Olhou para a imagem do Santo e veio-lhe à ideia: “Ó minha rica menina, meu anjinho, meu mais que tudo! Prometo-te que, com a ajuda do nosso São Gonçalinho, nunca te deixarei passar pelas misérias que eu e a pobre da tua mãe temos sofrido.” Sempre tinha sido uma mulher de palavra. Decidiu, nesse momento, cumprir a sua parte da promessa, pensando que o estouro do foguete tinha sido um sinal do seu Santinho. Abriu o gás e, ao ouvir o primeiro estralejar da girândola final, acendeu o fósforo. O estouro da explosão fundiu-se com o estrondo do foguetório, fazendo pensar, a quem ouviu, que a Mordomia desse ano se tinha esmerado, pois não havia memória de tão potente fogo de artifício.

No dia seguinte, à tardinha, na Praça junto aos Arcos, comentavam-se os dois acontecimentos, gabando a maior parte dos presentes a grandiosidade dos festejos, especialmente da foguetaria, lamentando alguns a tragédia que se tinha abatido sobre aquela infeliz família. O Zé Canhoto, quando se despediu para ir às batatas, disse:

– Tenho, cá para mim, que o São Gonçalinho se sentiria muito mais honrado se, em vez de terem mandado ao ar tantos milhares de euros, tivessem utilizado essa barcada de massa para ajudar os pobres do nosso bairro, evitando desgraças como a de ontem.

– Vai-te embora, água bórica! És um má língua! Põe-te a pau com essas bocas, porque o São Gonçalinho é vingativo!.

Foi a resposta que ouviu, com um sorriso triste de… infelicidade.

* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura)

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