Em defesa da descida imediata das taxas de juro

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Indicadores (imagem gráfica).

As economias de capitalismo avançado encontram-se numa situação peculiar. Está criada, dos dois lados do Atlântico, a expetativa de descida das taxas de juro numa altura em que as taxas de desemprego se encontram em níveis historicamente baixos e as economias não parecem ameaçar uma recessão iminente.

Por José Figueiredo *

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Indicadores económicos.

Aparentemente estaremos a um passo de uma desinflação imaculada, ou seja, um processo em que subidas fortes, e em passo de corrida, das taxas de juro de referência terão colocado as taxas de inflação numa rota consistente com os objetivos dos bancos centrais, mas sem causar grande dano na economia e no emprego.

A maioria dos economistas acreditava que seria necessário mais sofrimento para trazer a inflação para valores aceitáveis. A expetativa generalizada na profissão era uma recessão quase certa na Europa e altamente provável nos Estados Unidos. Como sabemos, até ver, não aconteceu nada disso, com a economia americana a crescer a uns não negligenciáveis 2,5% em 2023 e a zona euro a pular uns mais modestos 0,5%.

Na última crónica defendi a ideia de que os economistas não devem ficar deprimidos por mais este falhanço preditivo. Contudo, também defendo que a atitude correta não é assobiar para o lado e ignorar o problema.

Creio que há duas questões importantes a encarar. A primeira é perceber o que, de facto, gerou o surto inflacionista posterior a 2021 (talvez isso nos ajude a perceber porque falharam todas as previsões), a segunda, quiçá mais importante, é saber, assumindo que os modelos preditivos são falíveis, como vamos elaborar e colocar no terreno a política monetária no futuro.

Em relação à primeira questão dispomos de um estimulante trabalho de dois dos melhores economistas dos nossos dias, Ben Bernanke (ex-presidente da Reserva Federal Americana, atualmente na Brookings Institution) e Olivier Blanchard (ex-economista chefe do FMI e atualmente no Peterson Institute), no qual procuram decompor o surto inflacionista que se seguiu à meada de 2021.

Basicamente Ben Bernanke e Olivier Blanchard decompuseram o impulso inflacionista em seis contribuições, a saber, (1) as condições iniciais, ou seja, a inflação que teríamos na ausência de qualquer choque, (2) a pressão no mercado de trabalho, (3) deficit (real ou sentido) na oferta, (4) energia, (5) comida e (6) produtividade.

Notar que das seis parcelas, apenas uma, a pressão no mercado de trabalho, que podemos medir comparando o número de postos de trabalho por preencher com o número de pessoas à procura de emprego, pode de alguma forma ser controlada pela política monetária.

O gráfico em cima descreve o resultado da pesquisa de Ben Bernanke e Olivier Blanchard no que se refere à zona euro. A linha azul contínua representa a inflação real, as barras coloridas representam as contribuições das seis componentes.

O que se pode constatar é que o contributo da pressão no mercado de trabalho (barra vermelha V/U) foi muito pequeno e que as grandes aportações para o surto inflacionista foram a energia (barra azul escura), a comida (barra azul claro) e a escassez da oferta (barra amarela). As condições iniciais não eram inflacionárias e o impacto da produtividade não foi significativo.

Isto ajuda a explicar porque falharam os modelos preditivos. Aquilo que eles podem captar, sobretudo os efeitos da pressão no mercado de trabalho, tinha um impacto modesto e o que realmente pesava, ou seja, a energia e depois a comida e a escassez da oferta resultavam de choques que ninguém podia antecipar, a saber, guerra da Ucrânia e pandemia.

A segunda questão é saber como organizar a intervenção monetária no futuro sabendo que não há bolas de cristal.

Talvez a lição mais importante deste ciclo inflacionário seja o limitado poder explicativo de um modelo baseado da dinâmica de salários e preços.

Sabemos como o essencial dos índices de preços em economias de capitalismo avançado é representado por serviços e também sabemos como os salários são a maior componente dos custos dos serviços, ou seja, tudo o mais igual, quando os salários aumentam os preços dos serviços também aumentam. É aliás este um dos argumentos que o BCE está a utilizar para retardar a descida dos juros. Todos estão preocupados com a inflação nos serviços que possa estar a ser induzida pelos aumentos salariais.

Não digo que a preocupação com a dinâmica dos salários e o impacto nos preços seja deslocada. Não é, com certeza!

Contudo, como o trabalho de Bernanke e Blanchard mostra, o impacto do mercado de trabalho no surto inflacionista foi muito pequeno e mesmo que o tivéssemos reduzido a zero teríamos inflação insuportável de qualquer modo.

Talvez seja tempo de olharmos para os outros componentes dos custos e, nomeadamente, para os lucros das empresas.

A parte da inflação que não conseguimos explicar com os choques exógenos da energia e, subsequentemente, da comida, resulta do lado da oferta onde podemos contar com alguma escassez real, sobretudo em resultado da pandemia, mas também com o que os economistas chamam a “greedflation”, palavra para a qual não encontro tradução direta em português, mas que podemos designar por inflação da ganância.

Muito da barra amarela no gráfico em cima representa oportunismo das empresas com poder para marcar preços, que lhes permitiu não só acomodar os aumentos salariais e os aumentos de outros fatores de produção, como ainda aumentar os lucros, tirando partido de uma situação real ou artificialmente criada de escassez na oferta.

O foco excessivo na dinâmica dos salários pode levar a uma comunicação em que os trabalhadores aparecem como os culpados da inflação, ponto de vista que não só é tecnicamente errado como é politicamente insustentável. Será, por isso, positivo que os banqueiros centrais comecem a deitar também o olhar sobre a evolução dos lucros.

Uma outra variável a que os bancos centrais devem dar mais atenção é a produtividade. Aumentos salariais de 3 ou 4% podem não ser problemáticos tendo em vista um alvo de inflação de 2%, desde que a produtividade absorva o excesso crescendo 1% ou 2%.

Como parte do crescimento da produtividade depende da dinâmica da procura pode justificar-se uma maior complacência das autoridades monetárias em relação ao crescimento dos salários. Fui muito crítico em relação à postura negligente dos bancos centrais quando se manifestou o surto inflacionário na meada de 2021. Não perceberam o que se estava a passar e acordaram tarde e a más horas para a necessidade de agir.

De alguma forma, o medo de errar de novo pode estar a tolher a ação das autoridades monetárias. É certo que a variação dos salários nominais ainda se mantém com algum vigor e também é verdade que as primeiras leituras da inflação de janeiro e fevereiro podem suscitar alguma cautela. Ainda assim, tenho dificuldade em ver como, com o que sabemos agora, uma descida de 25 pontos base nas taxas de juro de referência possa descarrilar o processo de desinflação em curso. É certo que reduzir juros em 25 pontos base é apenas um sinal, mas aqui, como em tudo na vida, os sinais são importantes. Espero bem que seja essa a decisão já na reunião do BCE neste mês de abril.

* Economista. Artigo publicado originalmente no site Solidariedade.pt.
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