Centenário do nascimento de Natália Correia, a Mulher e Poeta Insubmissa

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Natália Correia.
Comercio 780

A 13 de setembro comemorou-se o centenário de Natália Correia. Quando falamos de Natália, falamos de uma mulher que foi maior do que o país. Uma verdadeira força da natureza, foi uma revolução num tempo em que o país se encontrava amordaçado e oprimido pela ditadura fascista de Salazar.

Por Nuno Alexandre *

Casou-se quatro vezes, lutou contra a ditadura, apoiou movimentos antifascistas, viveu, sonhou e viu acontecer a Revolução e foi deputada à Assembleia da República.

A Menina açoriana que se fez Mulher e Poeta

Natália nasceu a 13 de setembro de 1923 na Ilha de São Miguel, nos Açores. Filha de Maria José, professora primária e que, segundo Natália, desde cedo deu-lhe a conhecer os “clássicos do pensamento libertário”, e de Manuel Correia, um homem de quem se sabe muito pouco, mas que era conhecido por ser libertário no pensamento e conservador nos costumes. A infância de Natália foi marcada pela ausência do pai. Manuel imigrou para o Brasil e durante décadas a família ficou sem saber notícias dele, o que levou Natália a sentir-se abandonada pelo pai, levando-a poeticamente a limitá-lo ao papel de fecundador “De meu pai que das sereias foi cobridor português coube-lhe em versos a fome do lápis com que me fez”.

Natália deixou a terra de Fajã de Baixo aos 3 anos quando a sua mãe teve de ir para Ponta Delgada, pois a escola onde lecionava havia sido encerrada. Aos 11 anos, chega a Lisboa, pouco depois de ter entrado em vigor a constituição de 1933, a constituição do regime ditatorial fascista. Foi desde muito cedo, que Natália sentiu na pele a repressão do regime salazarista e foi também desde muito cedo que começou a combater a ditadura. Estreou-se na literatura em 1946, aos 22 anos, ao lançar um romance juvenil intitulado “Grandes Aventuras de um pequeno Herói”, e no mesmo ano tornou-se locutora do RCP (Rádio Clube Português).

Libertem a Liberdade!”

Foi através da força das palavras, através da poesia que Natália lutou contra o regime totalitário fascista salazarista. Em 1949, apoiou a candidatura da oposição de Norton de Matos e mais tarde, em 1959, apoiou a candidatura do General Humberto Delgado, o General Sem Medo que foi assassinado pela PIDE a mando de Salazar, em 1965. Militou no MUD (Movimento de Unidade Democrática) e em 1969 aderiu à CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática), movimento liderado por Mário Soares.

Em 1966, a convite de Ribeiro de Mello, editor da Afrodite, criou a “Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”, uma obra que continha cancioneiros medievais, a revelação do erotismo de Fernando Pessoa e vários poemas de Ary dos Santos, Luís Pacheco, Mário Cesariny e de Ernesto Mello e Castro. A antologia, que venceu o prémio do livro do ano Bertrand em 2019, foi uma autêntica revolução no país e que fez tremer o regime salazarista. A obra foi apreendida pela PIDE com a justificação de que representava uma “ofensa aos bons costumes e à moral”. Os poetas, incluindo Natália e o editor Ribeiro de Mello foram levados a julgamento e foram condenados em Tribunal plenário. Foi nessa altura que Natália escreveu o poema “A defesa do Poeta”.

Apesar de ter sido condenada, não foram os tribunais e a censura que calaram a poeta. Natália nunca se calou e manteve-se fiel aos ideais da luta pela liberdade e pela democracia. É então que em 1968, funda o Botequim. O Botequim é um bar, ainda hoje situado no Largo da Graça, em Lisboa. O bar era frequentado por resistentes antifascistas, por pessoas de todo o país e por vários poetas e figuras públicas como Ary dos Santos, Maria Armanda Falcão (Vera Lagoa), Luís de Sttau Monteiro, Francisco Sá Carneiro, Amália Rodrigues, Snu Abecassis e Mário Cesariny. Era no botequim que Natália dava de beber, ela enriquecia culturalmente as pessoas. Declamava os seus poemas e alertava para atual situação do país.

Em 1972, Natália volta a sentar-se no banco dos réus do Tribunal Plenário por ter tido responsabilidades editoriais na obra das 3 Marias (Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta), intitulada “Novas Cartas Portuguesas”, uma obra que também fez tremer o regime fascista e a proclamada e tão falsa “Primavera Marcelista”.

Natália continuou a sua luta!

O sonho concretizado em vida. Viva a Revolução de Abril!

25 de Abril de 1974, o dia de todos os sonhos! Natália assistiu e viu um dos seus maiores sonhos ser concretizado. A ditadura fascista e todos os seus órgãos e aparelhos repressivos são derrubados, e o povo conquista a Liberdade e a Democracia! Foi um dia feliz e glorioso para o país e para Natália! Em 1983, numa entrevista, afirmou que uma das coisas que ficou da Revolução de Abril foi a oportunidade e grande disponibilidade para as pessoas se organizarem!

Juntou-se ao Partido Socialista, mas foi por pouco tempo. Durante o PREC (Período Revolucionário em Curso), Natália chateou-se com alguns “excessos revolucionários” e não viu o PREC com bons olhos devido a alguns períodos e situações mais conturbadas.

Mais tarde, em 1979, junta-se a Francisco Sá Carneiro, um dos fundadores do PPD/PSD, e filia-se no partido, onde vem a integrar as listas de candidatos do PSD a deputados à Assembleia da República. Em 1980, a AD (Aliança Democrática), uma coligação do PSD com o CDS e com o PPM, vence as eleições legislativas e Natália é eleita deputada por Lisboa. Ainda no governo de Sá Carneiro, entra em confronto com Vasco Pulido Valente, escritor e ensaísta e que na altura era Sec. De Estado da Cultura. Natália criticava-o bastante porque o Ministério não tinha políticas de valorização do setor das artes e também porque censurou de forma disfarçada e não autorizou que fossem transferidas verbas para uma peça preparada por ela sobre o quarto centenário da morte de Camões. Em dezembro de 1980, a avioneta que transportava Sá Carneiro (Primeiro-ministro da época), Snu Abecassis e outros membros ligados à AD, despenhou-se em Camarate, e todos os ocupantes da avioneta acabaram por falecer. Foi um momento de grande tristeza para Natália. Ela gostava muito de Sá Carneiro e de Snu. A poeta é conhecida por ser a madrinha do romance de Francisco e de Snu, uma história de amor que foi uma verdadeira revolução e que abanou os setores mais patriarcais e conservadores da sociedade portuguesa.

Em 1982, discutia-se na Assembleia da República o projeto de lei do PCP que propunha a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Natália enquanto deputada, centrou-se na defesa dos Direitos das Mulheres, dos Direitos Humanos e da Defesa da Cultura. A poeta sempre foi a favor da legalização do aborto em Portugal, mas o seu partido, o PPD/PSD e o CDS, que na altura tinham maioria parlamentar, eram contra. Natália foi das únicas deputadas de direita a levantar-se a favor do projeto de lei do PCP. João Morgado, um deputado conservador do CDS, afirmou no debate que “o ato sexual é para ter filhos”. Natália respondeu-lhe com um poema, escrito na hora, intitulado “TRUCA-TRUCA”.

Já que o coito – diz Morgado –
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou – parca ração! –
uma vez. E se a função
faz o orgão – diz o ditado –
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.”

O poema causou risos em todas as bancadas, menos na do PSD e do CDS. O facto de o PSD se ter tornado conservador em muitas matérias ao longo do tempo, fez com que Natália saísse do partido e passasse a ser deputada independente. Mais tarde, em 1985, vem a apoiar o PRD (Partido Renovador Democrático), um partido fundado pelo General Ramalho Eanes, na altura Presidente da República, ficando como deputada no parlamento em representação do partido de 1987 a 1991, ano com que ganhou o prémio de poesia da Associação Portuguesa de Escritores pela obra “Sonetos Românticos” e que foi agraciada pelo Presidente da República Mário Soares com a Ordem da Liberdade.

Ainda em 1987, IIona Staller, uma atriz pornográfica e deputada italiana mais conhecida por Cicciolina, visita a Assembleia da República. A deputada italiana foi remetida à galeria do Corpo Diplomático e mostrou os seios. Os deputados da ala esquerda riam-se e lamentavam estar de costas para Cicciolina. Já os deputados conservadores do PSD e do CDS protestavam juntamente com o Presidente da Assembleia da República da época. Todo este fervor no parlamento, leva Natália a escrever o poema “Estava o Parlamento em tédio morno”. Natália foi a única deputada da casa da Democracia que foi receber a deputada e atriz italiana, dando-lhe as boas-vindas e um abraço caloroso.

A Natália era assim. Uma mulher verdadeiramente fiel às suas convicções! Não discriminava ninguém! E numa altura em que o parlamento era composto por deputados maioritariamente homens, a poeta nunca foi submissa e continuou sempre a mesma pessoa frontal e assertiva!

De regresso à “MÃE ILHA”. A memória e o legado que perdura!

Na madrugada de 16 de março de 1993, depois de chegar a casa do Botequim, Natália sofreu um ataque cardíaco e acabou por falecer. O seu corpo foi cremado e encontrava-se inicialmente no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, mas em 2016 regressou aos Açores. A poeta regressou à sua “Mãe Ilha”, como ela descrevia em muitos dos seus poemas.

A Natália é certamente uma das maiores poetas da contemporaneidade! Uma Mulher que ainda hoje serve de inspiração para tantas e para tantos! Helena Roseta no dia em que Natália faleceu afirmou “Daqui a 100 anos, provavelmente ninguém se lembrará de nós, mas toda a gente vai ter de falar de Natália Correia!” E vão mesmo! Deixo um apelo para que os professores de português deem a conhecer nas escolas aos seus alunos, esta enorme Mulher e Poeta que marcou o nosso país! A Natália merece ser lembrada! A Natália tem de ser lembrada!

Muito obrigado por tudo Natália Correia!

* Estudante, Aveiro.

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