Aves de dois mundos, no Dia Mundial das Aves Migradoras

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Foto de José Granadeiro.

Uma ave que levanta voo na Guiné-Bissau, rodeada de mangais, palmeiras e habituada a temperaturas na ordem dos 30 graus, e aterra passados seis dias na Islândia, onde a paisagem está ainda coberta por neve e gelo e a temperatura máxima ao meio-dia não passa dos 10 graus, é uma ave verdadeiramente de dois mundos!

Por José Alves e José Granadeiro, no Dia Mundial das Aves Migradoras (10 de maio) *

Em Portugal ocorrem muitas dezenas de espécies com comportamento migratório, desde os pequenos passeriformes (p.e. as andorinhas), aves planadoras (como as aves de rapina e as cegonhas) e muitas aves aquáticas (patos, limícolas) e marinhas (p.e. alcatraz, cagarras). Muitas destas espécies percorrem grandes distâncias, atravessando hemisférios e nessas viagens cruzando zonas com características físicas e ecológicas muito distintas. Dia 8 de maio celebra-se o Dia Mundial das Aves Migradoras e, nesta época do ano, milhares de aves deslocam-se para os seus locais de reprodução no hemisfério norte, muitas delas tendo passado a época não reprodutora a vários milhares de quilómetros de distância.

No caso particular das aves limícolas, sendo que muitas delas se reproduzem no ártico e sub-ártico, a sua migração de regresso às zonas de reprodução tem início ainda antes da partida. Em rigor, a migração inicia-se com a preparação dessa viagem. Como muitas destas espécies fazem longos voos de centenas ou milhares de quilómetros sem parar, a preparação pode demorar várias semanas. Nesse período, as aves adquirem a energia necessária para cumprir grandes voos sem paragens, acumulando-a principalmente sob a forma de gordura. E claro, quanto mais longo o caminho a percorrer, mais gordura será necessário acumular!

Na rota migratória do Atlântico Leste, na qual várias zonas húmidas portuguesas são um ponto chave para estas e outras espécies, o recordista dos voos migratórios sem paragens é o Maçarico-galego (Numenius phaeopus). Embora alguns indivíduos possam passar o inverno em Portugal, a grande maioria dos maçaricos da população que se reproduz na Islândia, inverna na costa oeste africana. E pasme-se: alguns indivíduos migram num único voo desde o arquipélago dos Bijagós, na Guiné-Bissau até à Islândia – sem qualquer paragem para descansar, consumir alimentos ou se hidratarem! São cerca de 6000 km em voo contínuo durante 5-6 dias (e noites). Contudo, apesar destas longas distâncias a percorrer, as condições ambientais no arquipélago dos Bijagós são de tal forma favoráveis que se estima que a preparação destes voos requeira “apenas” cerca de 18 dias nestes locais, mas mais do dobro desse tempo em locais de invernada mais a norte! Estes são alguns dos resultados de um artigo científico de Camilo Carneiro publicado já este ano na revista Ecography em formato de acesso aberto. Pode ser lido aqui.

Uma ave que levanta voo na Guiné-Bissau, rodeada de mangais, palmeiras e habituada a temperaturas na ordem dos 30 graus, e aterra passados seis dias na Islândia, onde a paisagem está ainda coberta por neve e gelo e a temperatura máxima ao meio-dia não passa dos 10 graus, é uma ave verdadeiramente de dois mundos!

As cagarras são as aves marinhas mais abundantes em Portugal e estão entre os nossos mais impressionantes migradores oceânicos. Reproduzem-se em grande número nos arquipélagos dos Açores e da Madeira (principalmente nas Ilhas Selvagens) e criam também no arquipélago das Berlengas. Anualmente, em novembro muitos milhares de cagarras atravessam o Atlântico até ao Brasil, para depois rumarem a leste, onde passam o período não-reprodutor nas águas ricas da corrente de Benguela, na África do Sul. O oceano é a sua casa, e só a partir de fevereiro começam a retornar a norte, de volta aos deveres da reprodução.

As aves limícolas migradoras, recordistas dos longos voos contínuos, estão na linha da frente das ameaças colocadas pelas alterações globais do nosso planeta e pela degradação dos seus ecossistemas. Se, por um lado, a aquecimento global é muito notório nas zonas terrestres de reprodução no (sub-) ártico, a subida do nível médio do mar e, particularmente, a pressão humana que se fazem sentir nas zonas húmidas costeiras onde habitam durante o inverno são desafios que estas espécies têm de conseguir ultrapassar para subsistirem no futuro.

As aves marinhas, por seu lado, enfrentam um oceano em rápida mudança, com alterações de correntes, ventos e produtividade e a permanente ameaça das atividades humanas, com destaque para a pesca e a poluição.

Conservar todas estas espécies e os seus ecossistemas requer portanto que se preservem os “seus dois mundos”, que na verdade são o mesmo planeta que com elas partilhamos.

Para saber mais sobre estas incríveis aves veja aqui e aqui.

Investigadores do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM).

Artigo publicado originalmente em https://www.ua.pt/pt/noticias/13/68878 .  

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