A crise energética na Europa e como lidar com ela

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Ninguém duvida que a energia é o principal responsável pelo atual surto inflacionista. A energia é fundamental para todo o funcionamento do tecido económico-social.

Por José Figueiredo *

Em boa verdade a produtividade das sociedades humanas só começou a subir significativamente a partir do momento em que aprendemos a utilizar a energia do carvão para produzir vapor e movimentar máquinas.

Ainda antes da primeira guerra mundial os almirantes da marinha inglesa deram-se conta que era mais prático e mais eficiente movimentar navios com base em derivados de um óleo natural, muito vulgar no médio oriente, do que com o clássico carvão. Assim começou a era do petróleo.
A era do petróleo trouxe muitas coisas boas. Por exemplo a incorporação de energia fóssil na agricultura permitiu ao sector que por volta de 1950 produzia comida suficiente para 1 bilião de pessoas, produzir atualmente para 7 biliões. Em boa medida os grandes ciclos económicos são regulados pelo que se passa com a energia.

Os “trinta anos magníficos” que se seguiram à segunda guerra mundial foram, em boa parte, suportados por um longo período de preços baixos do petróleo e acabaram, justamente, quando os preços começaram a subir depois da guerra do Yom Kippur.

Um segundo choque petrolífero – causado pela revolução iraniana – colocou a economia mundial em estado de choque.

Claro que o ocidente aprendeu alguma coisa com esse período turbulento, a intensidade em energia das economias (energia gasta por unidade de produto) foi abatendo e as energias renováveis foram fazendo o seu caminho. Contudo, mesmo com muitos passos dados no sentido certo, a verdade é que a economia global ainda assenta em energias fósseis. Mesmo na Alemanha, talvez o país mais bem-sucedido na incorporação de renováveis, o balanço da energia primária, apenas reduziu a percentagem do fóssil de 84% para 78%.

O grande drama do mundo moderno é que os recursos energéticos estão localizados em países política e socialmente instáveis ou hostis ao ocidente. O ocidente está, de facto, refém de países onde vigoram regimes autoritários ou mesmo ditaduras ou de países imprevisíveis dada a volatilidade política. Nunca como agora isso ficou à vista. A guerra na Ucrânia e as sanções à Rússia fizeram disparar os preços das matérias-primas energéticas, em particular o gás natural. Pior ainda, a Rússia pode a qualquer momento fechar a torneira do gás e provocar uma crise económica e humanitária na velha europa já no próximo inverno. Não vai ser fácil viver com isto.

Os governos incumbentes vão ter muita dificuldade em lidar com a revolta dos cidadãos para quem a conta da energia pode aumentar para próximo do dobro. Vacilar no apoio à Ucrânia e fazer a vontade à Rússia também não é opção. Para lá das razões morais para não o fazer, dá-se o caso de ser inútil. Como sempre, ceder à chantagem apenas gera mais e mais profunda extorsão. Nesta matéria o ocidente atravessou o seu Rubicão e agora não há retorno possível.
Para complicar ainda mais as coisas dá-se o caso de os preços da energia serem preços algo estranhos. Uma turbina eólica, com tempo favorável, produz com custo marginal praticamente zero. Algo similar acontece com uma central a gás. O custo de construção é enorme, mas depois os custos de funcionamento são relativamente baixos.

As coisas mudam rapidamente de figura quando a procura se aproxima da capacidade produtiva – aí os preços podem disparar de uma forma violenta. No jargão economês diz-se qua curva da oferta no início é quase plana, mas quase a pique quando a capacidade produtiva se aproxima do limite. Do lado da procura a coisa também não é simples. Por vezes, mesmo quando os preços sobem muito, não é fácil fazer o que seria normal, isto é, gastar menos.

Podemos fazer alguma poupança nos nossos hábitos diários (andar menos de automóvel, gastar menos energia doméstica, etc.). Contudo, uma fábrica cerâmica ou de vidro cujos fornos funcionam a gás só pode reduzir o consumo de gás se deixar de produzir ou produzir menos. Parece evidente que o problema é complexo e vai exigir da Europa o seu melhor, talvez mesmo melhor do que alguma vez vimos.

Creio que só um milagre evitará que a Europa entre em recessão no futuro próximo. Mesmo no melhor dos cenários, nos países mais dependentes do gás russo, será necessário cortar 15% do consumo em países como a Alemanha, Itália ou Áustria. Nos países do Leste, como Chéquia, Eslováquia ou Hungria a escassez pode chegar aos 40%. As perdas de produto derivadas da crise energética podem ir de quase 7% na Hungria até valores relativamente pequenos (1% ou menos) em países mais ocidentais como Portugal e Espanha. Se a Europa dispusesse de um sistema integrado de receção e distribuição gás as perdas seriam menos de metade.

Do que vamos precisar nos próximos trimestres e possivelmente nos próximos anos é de solidariedade e resiliência. A resiliência é indispensável para fazer face à chantagem russa. A Rússia tem de ser derrotada no seu próprio jogo e dar-se conta que não nos pode vergar, mesmo que para isso tenhamos de enfrentar uma recessão que, como vimos, dependendo das geografias, pode ser profunda e durar um par de trimestres.

A solidariedade também vai ser fundamental. A chantagem russa seria muito menos eficaz se a Europa se tivesse dotado de uma rede integrada de distribuição de gás. Foram interesses mesquinhos como os da Alemanha e da França que o impediram. A Alemanha porque tinha o seu “problema” resolvido com abastecimento barato e supostamente seguro a partir da Rússia, a França porque pretendia proteger o seu sistema elétrico baseado no nuclear.

Obviamente não sei antecipar como vai a Europa reagir a esta crise, porventura a mais perigosa desde que o projeto europeu foi lançado. Verifico alguns sinais positivos. Um pouco por todo o lado vemos as coisas a mexer. A Alemanha, por exemplo, leva um mês de avanço nos seus próprios objetivos de armazenagem de gás. A armazenagem global está acima dos níveis comparáveis de 2021. Indústrias vão substituindo o gás e, quando não é possível, compram produtos intermédios em locais onde não há escassez de gás, reduzindo assim o uso da matéria-prima sem comprometer a produção.
Talvez, talvez naveguemos esta crise com sucesso.

* Economista. Artigo publicado originalmente no site Solidariedade.pt

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