Vale da Mó: Um percurso pelas termas de águas férreas

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Termas do Vale da Mó (foto Rota da Bairrada).

Na freguesia da Moita, a cinco quilómetros de Anadia, situa-se a ambientalmente paradisíaca estância termal do Vale da Mó, propriedade da Câmara Municipal de Anadia, cujas águas férreas são indicadas para o tratamento de anemias e outras carências de ferro.

Por Cardoso Ferreira | [email protected]

No fundo de um frondoso vale que desce da povoação, a estância termal parece não querer perturbar a natureza que a rodeia, tal a quietude que se vive no local, que ainda é mais acentuada pelos declives rochosos das encostas envolventes.

Na entrada da estância, junto ao edifício do posto médico das termas, há um pequeno parque de estacionamento automóvel, com árvores de grande porte. O acesso ao edifício da buvette (ou da fonte termal de águas férreas), situado num plano inferior, faz-se por uma escadaria que aproveita o teto do pequeno imóvel como terraço. Frente à buvette alarga-se um terreiro arborizado ao qual se segue, num plano mais baixo, um parque de merendas, também ele bastante arborizado.

Na zona de transição entre estes dois recintos, há uma outra zona de parqueamento automóvel, que marca o final da estrada de acesso à estância termal. A água que brota na fonte termal é bastante fresca, com ligeiro sabor a ferro, a qual é bebida pelos aquistas.

Percurso pedestre

Apesar de existir o “Circuito Pedestre da Termas de Vale da Mó”, com o respetivo folheto informativo, que percorre não só a área urbana da aldeia, mas também a cumeada da serra, com passagem ao lado do “mirante” (marco geodésico), a nossa opção é um percurso mais pequeno, somente pela povoação do Vale da Mó.

Saindo da buvette, subimos a ladeira, em reta, até ao entroncamento desta na estrada que liga o Vale da Mó à estância termal do Luso, junto à “Casa da Avó Micas” (alojamento local). No alto da encosta fronteira, por detrás nas novas habitações, ergue-se a imponente casa da quinta da família Rua, imóvel que ainda mantem a grandeza apesar de ter sido parcialmente destruída durante o último grande incêndio florestal ocorrido na região.

No entroncamento, viramos à esquerda. Algumas dezenas de metros mais adiante, surge o pequeno largo, que quase se poderá dizer que é o “centro histórico” da aldeia, no qual se destaca a fonte, com um painel de azulejo que recorda o desativado moinho de vento que existia no cimo de um monte dos arrabaldes do Vale da Mó.

No final do largo, viramos novamente à esquerda, avistando-se, no alto de uma pequena colina, a velha capela de Nossa Senhora da Piedade, que foi igreja do extinto convento de religiosas da Ordem de Santa Úrsula construído no início do século XVIII. Do lado esquerdo da capela, e nas traseiras, ainda persistem algumas ruínas desse cenóbio. De regresso à rua principal, e uns metros volvidos, encontra-se, do lado direito, a antiga “Pensão Montanha”, casa que foi uma referência para centenas de aquistas que frequentaram estas termas na segunda metade do século XX.

Voltando ao largo, a opção é seguir em frente, para o pequeno núcleo urbano da aldeia. Do lado esquerdo, surge o “histórico” Café Central, cuja antiga proprietária (D. Floripes) era familiar do bispo aveirense D. Manuel de Almeida Trindade. Uns metros mais adiante, há um pequeno largo. Se formos em frente, em direção da aldeia de Canelas, iremos encontrar a barragem da Gralheira, com a zona de lazer que lhe fica anexa.

No entanto, a opção é a rua que sobe para a direita. Logo no início, do lado direito, fica a casa que o histórico dirigente do Partido Comunista, Álvaro Cunhal, frequentou em finais da década de 1940, quando vivia na clandestinidade. Um pouco mais acima, no local onde a rua faz uma curva acentuada para a esquerda, fica o lavadouro público, com uma fonte anexa. O lavadouro é um bom miradouro para se apreciar o vale e a encosta da quinta da família Rua.

Continuamos a subir a rua, que passa junto à desativada escola primária (do lado direito) e à casa de uma quinta e pomar onde abundavam aveleiras, casa que era o limite urbano da aldeia. Um pouco mais adiante, onde a rua faz uma apertada curva para a direita, seguia em frente o caminho que conduzia à Fonte da Serra. A rua continua a subir a encosta até entroncar na estrada que passa pela cumeada da serra. Aí, do lado direito, ergue-se um “moinho”, uma casa de alojamento turístico que recorda o antigo moinho de vento que ficava nas proximidades, moinho que ainda estava em funcionamento na segunda metade do século XX.
De regresso ao lavadouro, segue-se por uma rua estreita que contorna a encosta, ladeada por algumas habitações, e que termina no centro urbano da aldeia, quase em frente ao Café Central. A partir daí, regressa-se à buvete termal.

Carvalhos, sobreiros, medronheiros, loureiros são algumas das muitas espécies arbóreas que crescem na floresta que ainda não foi invadida pelo eucalipto e pelo pinheiro.

“Varas” ex-libris de tempos idos

Nas décadas de 1960/1970, um “ex-libris” do Vale da Mó eram as varas, feitas de mimosas e acácias novas, usadas pelos aquistas como auxiliares nas caminhadas feitas pela aldeia e arredores, com destaque para as subidas ao “mirante” e ao moinho.

Há quem afirme que a tradição das varas começou com o trabalho artístico e artesanal de um senhor (pai dos artistas plásticos aveirenses Jeremias e Hélder Bandarra) que se sentava nos degraus iniciais do caminho que conduzia à casa da quinta dos Ruas, frente à atual Casa da Avó Micas, e pacientemente, com a ajuda de um canivete, decorava cada vara que os miúdos e graúdos lhe levavam, tendo o cuidado de personificar cada uma com o nome do respetivo proprietário e a data da sua feitura.

Águas termais descobertas por volta de 1730

A descoberta da água férrea termal do Vale da Mó terá acontecido por volta de 1730, quando ocasionalmente o Padre Manuel Almeida notou o seu sabor “ferruginoso”, e comunicou o facto a um irmão que era juiz-desembargador em Lisboa.

No ano de 1779, essa água surge mencionada na obra “Reflexões Metódico-Botânicas (e outras notícias de águas minerais)”, da autoria de frei Cristóvão dos Reis, carmelita descalço e administrador da botica do Convento do Carmo em Braga, onde faz várias considerações sobre as nascentes termais mais conhecidas à época no país. Por essa altura, a nascente do Vale da Mó foi visitada por José Seabra da Silva, membro dos governos dos reis D. João VI e D. José.

No entanto, só em 1912 surgiu o primeiro pedido de concessão, o que motivou a realização das primeiras análises químicas das águas férreas, realizadas por Bonhorst. A concessão termal teve um impacto substancial na evolução urbana da aldeia, com a construção de pensões e de casas para arrendamento de quartos para os aquistas. Após um período de estagnação, as Termas de Vale da Mó foram concessionadas à Câmara Municipal de Anadia, que aí realizou diversos melhoramentos, reabrindo em 2003.

Convento das Ursulinas e… “barriga de freira”

No início do século XVIII o Vale da Mó era então um lugarejo constituído por meia dúzia de casebres, altura em que foi construído um convento de religiosas da Ordem de Santa Úrsula, do qual resta a Capela Nossa Senhora da Piedade e algumas ruínas.

Esse convento foi mandado construir por um grupo de senhoras devotas, a conselho dos seus padres confessores, todos jesuítas. Com a extinção das ordens religiosas, ocorrida em 1834, as freiras deixaram o Vale da Mó e foram para o convento de Santa Ana, na cidade de Coimbra, ficando o cenóbio do Vale da Mó abandonado até que passou para propriedade privada.

As imagens existentes na capela datam, também, do início do século XVIII, tendo sido moldadas e pintadas pelos barristas de Aveiro.
Alguns estudiosos da doçaria tradicional e conventual da região bairradina são da opinião de que o doce “Barriga de Freira”, de Anadia, tenha tido a sua origem no Convento de Santa Úrsula, do Vale da Mó.

Álvaro Cunhal e António Feliciano de Castilho

O que têm em comum o histórico dirigente comunista Álvaro Cunhal e o poeta e pedagogo António Feliciano de Castilho? Ambos, por motivos políticos, viveram algum tempo clandestinos no Vale da Mó.
Nos inícios de 1949 a direção do PCP encontrava-se espalhada por casas clandestinas no distrito de Aveiro. Entre esses dirigentes comunistas, contava-se José Gregório, que com o nome fictício de “Alberto”, estava clandestino no Vale da Mó, sendo visitado frequentemente por Álvaro Cunhal, então com o nome de “Duarte”, que vivia clandestino no Luso, onde foi detido no ano de 1949, ficando preso em Peniche, de onde fugiu posteriormente.
Para além desses, na região também estavam Manuel Guedes, com o nome de “Santos” (na Vacariça) e Militão Ribeiro, com o nome de “António” (em Macinhata do Vouga).
Após o 25 de Abril de 1974, algumas pessoas mais idosas do Vale da Mó ainda se recordavam da presença de Álvaro Cunhal (então com um outro nome) numa casa situada na rua que dá acesso ao lavadouro. Outro dirigente comunista vivia clandestino na agora designada “Casa da Avó Micas”.
O poeta António Feliciano de Castilho, e o seu irmão Augusto, então prior de Castanheira do Vouga, dois acérrimos liberais, viveram algum tempo escondidos no Vale da Mó, fugidos das tropas absolutistas de Miguel. No entanto, acabaram por serem descobertos e detidos no Vale da Mó, até que o capitão-mor de Anadia, Joaquim Afonso, conseguiu que o comandante das tropas miguelistas libertasse os dois irmãos sob sua inteira responsabilidade, tanto mais que o pai dos Castilhos era um distinto professor da Universidade de Coimbra afeto ao governo de D. Miguel.

Águas termais

Em Janeiro de 1993 o laboratório da Direcção Geral de Geologia e Energia classificou a água termal do Vale da Mó como nascendo “bacteriologicamente pura, sem cheiro e de sabor ligeiramente férreo”, dizendo ainda que é “uma água hipotermal, fracamente mineralizada, ‘moderadamente doce’, mas de reação ácida”. Em termos químicos, a água do Vale da Mó, “tem uma elevada estabilidade sendo, do ponto de vista iónico, uma água bicarbonatada magnesiana ferruginosa. Trata-se de uma representante única deste tipo no património hidrológico português”. Por isso, essa água está indicada para Doenças do Sangue (anemias e outras por carência de Ferro); para Doenças Gastro-hepáticas (gastro-duodenais e hepatopatias); e para Anorexias e convalescenças.

Aceder a mais informações sobre as Termas do Vale da Mó

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