Somos (d)eficientes?

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Como dissera Saramago: “Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”. Uma reflexão sobre a deficiência e inclusão.

Por Erickinson Lima ([email protected]) *

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Como ponto de partida, as palavras acima citadas propiciam-nos uma lente crítica para entender os desafios contemporâneos, e convida-nos a uma reflexão profunda sobre a sociedade atual, incitando-nos a questionar a nossa própria “cegueira” diante das complexidades e desafios que enfrentamos, tanto como indivíduos quanto como coletivo.

Era mais um dia do mês de julho de 2015, acabava de entrar em classe para ministrar a primeira aula de direção do semestre letivo para uma turma da licenciatura em música. Tinham passado aproximadamente 15 minutos do início da aula quando entrou um aluno acompanhado por um outro que o guiava. Como sempre permiti que outros alunos assistissem às minhas aulas como ouvintes, nada questionei, e segui como planeado. No final da aula esse aluno dirigiu-se até mim. Apresentando-se, logo disse: “Professor, estou matriculado na sua aula, mas não se preocupe comigo, sou cego e irei ouvir toda a teoria da aula, mas não tenho como participar da parte prática”. Apesar da minha surpresa, espontaneamente respondi que ele iria participar ativamente da aula, e que até o final do semestre ele estaria dirigindo pequenos grupos. Enquanto isso, internamente me questionava: como tornar acessível uma disciplina de cunho prático e dependente da visão?

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Ao buscar por informações e ajuda pedagógica, comecei a visualizar o quanto os pensamentos e ações acerca da acessibilidade da direção, seja instrumental ou coral, eram inexistentes. Foi comum ouvir de colegas: “cegos não podem reger”, ou “para quê ensinar direção a cegos?”, e ainda, “para ensinar basta lhe guiar pela mão”. Por outro lado, apesar das legislações promissoras que buscam garantir a acessibilidade educacional para alunos cegos, a implementação efetiva dessas medidas muitas vezes deixa a desejar. A lacuna entre a teoria normativa e a prática quotidiana é evidente, com recursos, como materiais acessíveis e tecnologias adaptadas, frequentemente indisponíveis. A falta de treinamento adequado para educadores e a infraestrutura física inadequada das instituições educacionais contribuem para uma realidade onde a inclusão é mais retórica do que prática. Assim, a promessa de igualdade muitas vezes se confronta com uma realidade que ainda necessita de melhorias significativas para garantir uma educação verdadeiramente acessível. Pois, de que lado está a deficiência?

O acontecimento de 2015 revelou a minha cegueira. Revi as minhas práticas docentes, proporcionando acesso estruturado a conceitos práticos da direção. Como educadores, devemos superar o lugar-comum e o testemunho passivo, compreendendo que os desafios impulsionam o desenvolvimento profissional, pessoal, e estimula a quebra de estereótipos engessados no nosso campo de conhecimento. Afinal, não somos todos (d)eficientes.

* Centro de Investigação em Didática e Tecnologia na Formação de Formadores (CIDTFF) da Universidade de Aveiro. Artigo publicado originalmente no site UA.pt.

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