O Hermenegildo

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"O Gentil Vagabundo".

Era a festa do Santoínho, tentava divertir-me mas achava-me deslocada do grupo. Que Diabo fazia eu ali?

Por Clementina Matos *

Quedei-me a olhar a massa de gente vibrante e engalanada sob as luzes, enquanto se derramava na noite aquela música absurda, e uma cantiga estapafúrdia confundia os passos imprecisos das pessoas que queriam dançar, depois de terem comido e bebido em demasia.

– Mas que fazia eu naquele sítio? – voltei a questionar-me. Um tempo perdido, uma noite perdida…Todos os meus colegas, jovens professores e professoras, pareciam gozar a noite, em festa, mas… E eu? Inquiria a contra-gosto a minha própria consciência, arriscando a hipótese de admitir ser na verdade uma criatura misantropa. A inadaptação às gargalhadas dos meus colegas, desesperadamente desejosos de se agradarem mutuamente, em piruetas de frases e de atitudes, dava-me volta à razão, de tão triviais pueris e garridas que eram! Assim se me abalava cada vez mais o ânimo de permanecer no arraial do Santoínho.

Tinha o carro ali perto e já me preparava para debandar quando um jovem bonito, ágil, deslizante e cheio de um encanto no gesto e no olhar, parou em frente a mim. Entregou-me aquilo e eu não compreendi. Então, como se a pequena haste que ele me passara para a mão fosse a chama das olimpíadas, por uma fração de segundo senti o momento como se fosse especial, muito especial. Era contudo apenas uma haste, uma simples haste enfeitada de pequenos papéis coloridos, adereço típico das festas populares; uma haste de levantar com o braço ao alto para animar o ambiente; para contar à festa que a festa era festa.

Fitei o moço e tomei a vara, a mão segurando sem saber ao certo o que fazer com aquilo. Nenhumas palavras se disseram, porque a música preenchia o espaço todo. Sorriu-me com um encanto que me parecia irreal, como se algum anjo o tivesse tocado de uma graça ímpar, para desaparecer depois na turba. Varada, mirei o adereço festivo por segundos apenas, porque logo a seguir um rapazinho de olhos muito grandes, ávidos das cores que enfeitavam o dito enfeite, surgiu da massa ruidosa para se postar ali, em frente a mim. Tinha a boca descaída e os braços ao alto. Pequeno, mal me dando a mim pelo ombro, permaneceu quase petrificado a adorar-me como se eu fosse a virgem dos milagres. Atreveu-se, ao fim de incontáveis momentos, a apontar a magnífica vara colorida, e os seus olhos eram grandes, fulgurando na festa mais do que as mil luzes ao alto.

– Onde, onde… onde é que há mais disso? – perguntou gaguejando.

– Falas de quê, menino? – perguntei só para prolongar o contacto, pois sabia muito bem ao que se referia ele.

Não me respondeu porque não ouviu. Só os olhos cresciam e inquiriam. Depois

a boca abriu-se, tremia-lhe já a mão:

– Comprou… comprou isso? Onde é que.. Eu acho que tenho… – tartamudeou. E pôs-se a remexer nos bolsos difíceis.

– Referes-te a esta coisa? – inquiri apontando a haste.

Silêncio. Só os olhos falavam, grandes, cada vez maiores, e uma palidez de ansiedade a crescer sonhos talvez possíveis.

Sim, ele referia-se àquilo, e eu estava disposta a ceder-lhe a tal haste do tão garrido arraial minhoto. Sentia eu afinal essa festa agora agora naquele olhar assim apaixonado, um olhar cativo de uma simples vara de papéis colados e muito coloridos.

– Como te chamas?

– Hermenegildo.

– Caramba, que nome fantástico! Olha, isto não foi comprado, sabes? Foi-me dado agora mesmo, e nem sei bem porquê – contei, ao mesmo tempo que dizia para comigo mesma, que eu era a pessoa menos indicada para receber aquela coisa de levantar ao alto, na festa.

– Mas, olha – prossegui –, talvez o moço que ma passou tivesse adivinhado. Queria talvez fazer algum milagre. Vais querer isto para ti, não é assim?

Silêncio. A cabeça como um pêndulo a dizer que sim; os olhos esbugalhados no

meio do sarau estridente, à espera, enormes, a crescerem sonhos…

Desconfiou que lha desse. Sombras e dúvidas falaram, naquela contemplação ansiosa, e a lágrima não veio porque o nada era impossível – alguém lho havia dito – quando se quer muito. Ora, ele queria muito, pois claro. Teria naquela noite uma vara igual àquela? Ah, se lhe tivessem oferecido uma assim, a ele, tão linda! Tão urgente à festa! Aquele enfeite de levantar era o máximo, o complemento da alegria na festa do Santoínho! Falantes, apenas os olhos, porque as palavras se adivinhavam todas, e eu questionava-me: haveria naquele arraial algo tão belo, comparável à beleza do encantamento daquele menino? Não teria mais do que onze anos. Os pais dançavam certamente, ao som da música endoidecida de chamamentos, na pausa aos dias de trabalho, na semana das canseiras.

– Mas olha lá, Hermenegildo, tu queres que eu te dê isto, não queres? – perguntei, sabendo bem que era desnecessária aquela minha questão.

Então ele falou de novo, porém desta vez com um sorriso cheio de covinhas no rosto gaiato, os olhos eloquentes e o bracito ao ar. Num ápice resgatou-a e sumiu-se, voando em júbilo por entre o bulício da romaria, mais veloz do que o som. E foi então que a noite cresceu; a festa aconteceu afinal – Obrigaaaaaaaaado.…..

Uma girândola acabava de rebentar no céu sobre a multidão daquele sábado à noite, em ruídos impossíveis, misturados e loucos.

Dois rapazes no arraial minhoto, duas surpresas, surgimento e fuga, o sortilégio da festa rústica.

Subi a escadaria rapidamente. Ondulavam varas coloridas sobre mil cabeças. Ainda quis vê-lo ao longe, e ao riso a alargar-se em saltos, quase a explodir de tanta alegria, assim a girândola que estalava ainda. Mas foi como um sonho fugaz, imprevisto, mais veloz do que o pensamento. Como veio, foi-se, surgindo do nada e tornado explosão de foguete em festa.

Her me ne gil do – pronunciei, devagar. Era um nome tão grande, para um rapazinho que só tinha olhos e um sonho imenso: levantar a haste colorida para correr, correr com ela ao alto.

Dali se via todo o arraial, e eu senti que valera a pena, afinal, ter aceitado o convite dos colegas; que a noite enfim tinha beleza. E agora, inundada de um gosto infantil, eu sabia um nome, sabia um menino por entre a multidão.

***

Quando a campainha da antiga escola, um velho edifício plantado num grande jardim, fez soar o segundo toque de entrada, eu estava já na sala para a segunda aula de Francês. Substituía uma colega em licença de parto.

Convoquei quatro alunos para a dramatização do texto em que um rapazinho deveria convidar uma copine para o acompanhar à Fnac, na rua de Montparnasse em Paris. Quatro crianças saltaram logo para dentro do círculo, cada uma com o seu pequeno texto que tinha de ser lido com expressividade. Era o teatro em aula.

– Prontos todos? – perguntei. – Vamos gravar!

– Prontos, setora!

– Começar.

O rapazinho mais pequeno subiu para o estrado onde estava a colega dele. Tocou-lhe no braço e disse, com uma pronúncia que faria corar de gozo qualquer parisiense purista da sua língua:

Eh, Catherine, Tu viens avec moi?

E eu conheci aquelas covinhas; aquele riso; aquela alegria da festa do Santoínho que alegremente visitava agora a sala de aula, na Escola Preparatória de Frei Bartolomeu dos Mártires. Era o Hermenegildo.

* Autora. Excerto do livro de contos “O Gentil Vagabundo”. Apresentação dia 11 de junho (16:00), na Biblioteca Municipal de Aveiro .

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