Não foi um meteorito, são pessoas destruídas. Que fazer com esta tragédia?

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Foto partilhada pela Agência Ecclesia.

Os milhares de vítimas que a Comissão Independente trouxe esta segunda-feira para o meio de nós, dando espaço e tempo à sua voz, não são ‘meteoritos’ vindos do espaço. São pessoas que foram feridas e destruídas por quem era suposto garantir cuidado e transmitir confiança.

Por António Marujo, Clara Raimundo, Jorge Wemans e Manuel Pinto *

Os números tornados públicos são “inquietantes”, mas as vidas crucificadas que existem por detrás dos números são-no ainda mais. E o estudo – fomos advertidos pelos seus autores – “revela apenas uma parte muito pequena” da realidade. Na Igreja Católica e na sociedade em geral. É “uma ferida aberta que nos dói e nos envergonha”, como referiu o bispo José Ornelas, presidente das Conferência Episcopal, na primeira reação ao relatório.

Que vamos fazer com esta realidade que foi agora desvendada e que alguns, inclusive na hierarquia da Igreja, desconsideraram e até ridicularizaram, ao considerar este país um ‘oásis’ em questões de abusos? Que vão fazer os bispos? Que vão fazer os responsáveis políticos? Que vamos fazer todos nós, enquanto sociedade?

Os cristãos, que conhecem bem a parábola do samaritano, não podem mais dizer que não sabem; fazer de conta que não veem; passar ao largo, como se não tivessem que ver com o sofrimento causado. Como vão ao encontro de quem continua a sofrer e que carece de apoio, cuidado e reparação? Quem vai trabalhar os resultados e as recomendações do relatório que está ao dispor de toda a gente e ver o que pode e lhe cabe fazer? Quem vai ousar continuar a proclamar cada domingo o evangelho de Jesus, deixando estes milhares de vítimas à porta? Quem vai continuar a falar de sinodalidade, como se ela fosse uma espécie de “discurso politicamente correto”, e não passasse por acolher, escutar e caminhar com estes e outros marginalizados?

O trabalho a empreender não vai ser fácil. A razão é simples: a Igreja perdeu credibilidade no modo como lidou com os problemas de abusos, ao sacrificar as vítimas ao “bom nome” da Igreja: “Foi dada prioridade à defesa da reputação institucional da própria Igreja em detrimento da empatia com a voz, o sofrimento e a credibilidade da vítima”, diz o relatório. Será assim de admirar que, do total de vítimas, 77 por cento nunca tenha apresentado queixa a responsáveis da Igreja e bastantes das que o fizeram tenham sido vitimizadas uma segunda vez, ao serem tomadas como caluniadoras ou vítimas da inoperância dos responsáveis eclesiásticos?

Neste quadro, a hierarquia católica tem de ponderar se pretende continuar a apostar num modelo de comissões diocesanas da confiança do bispo, que não dão garantias de atuação independente às vítimas, ou se abre o jogo e inclui de forma equilibrada profissionais diversificados e competentes, do interior e do exterior da Igreja.

Foi certamente dado um passo importante ao apostar num estudo independente como aquele que acaba de ser apresentado. Mas as suas conclusões são assumidas pelo conjunto dos bispos, com todas as consequências inerentes, sabendo-se que cada um é ‘rei e senhor’ na sua diocese? Será que o mesmo espírito de comissões independentes vai continuar, no acompanhamento das medidas que vierem a ser tomadas?

O que ressalta do estudo da Comissão Independente, a propósito das entrevistas a cada um dos bispos portugueses sobre o grau de conhecimento direto dos abusos revela um panorama preocupante. “A resposta da maioria dos bispos – faz notar o documento – foi dizer que nunca lidaram com casos deste tipo. Apenas oito bispos referenciaram, no total, 13 casos do seu próprio conhecimento e, curiosamente, apenas a partir do momento em que se tornaram bispos (nunca como párocos ou simples sacerdotes) e bispos da atual diocese – portanto, com processos pendentes que vêm do seu antecessor.”

Não deixa de ser paradoxal haver tantos casos, muitos deles nas últimas décadas e alguns em anos recentes, enquanto uma parte significativa dos prelados alega desconhecimento e distanciamento dos casos de abusos, ao contrário do que foi verificado entre os superiores e superioras das congregações religiosas.

A hora é, pois, de decisões, se se quiser traduzir em consequências e em atos o choque tremendo do que nos foi dado ouvir e ler pela Comissão Independente. A escolha é entre a via dolorosa de reconhecer e assumir a verdade e a dor de quem sofre ou continuar a acreditar que ‘o tempo tudo cura’, sobretudo se não se agitarem as águas.

E isso passa, incontornavelmente, por reconhecer que as crianças são pessoas com dignidade e com direitos e não homúnculos e seres manipuláveis. As crianças não são os cidadãos de amanhã, mas sujeitos de direitos de cidadania hoje e que nos ensinam, de resto, dimensões fundamentais da existência. E que esperam de nós que, como adultos, sejamos companheiros de caminho, contribuindo para que possam crescer “em idade, em sabedoria e em graça”.

A hora é, igualmente, de lançar estudos e conversas alargadas sobre o exercício do poder no interior da Igreja, sobre a apropriação indevida desse poder por um grupo cada vez mais restrito de pessoas, sobre como favorecer a emergência de comunidades vivas e acolhedoras, em que se reconheçam, em igualdade de circunstâncias e de dignidade, o lugar dos batizados, homens e mulheres, em todos os ministérios.

A hora é, enfim, de a Igreja, dado este passo fundamental do conhecimento da situação no seu seio, lançar o desafio à sociedade portuguesa e às suas instituições, para que conheçamos em profundidade em que ponto nos encontramos e para onde queremos ir – seja neste capítulo ou em outros semelhantes, como a violência doméstica.

Estamos conscientes de que este caminho de mudança não é fácil nem se faz da noite para o dia. O problema dos abusos de poder e abusos sexuais decorre de comportamentos de pessoas desequilibradas e doentes, que precisam de cuidados. Mas a Igreja andaria mal se se recusasse a ver que, tal como afirma a Comissão Independente, há, no modo institucional de lidar com os abusos, uma dimensão sistémica de ocultação e de secretismo que, essa sim, é mortal, pelas consequências anti-evangélicas desastrosas que a história recente, não apenas em Portugal, desgraçadamente ilustra. É o combate a essa cultura de segredo e de falta de transparência – afinal, uma cultura de medo da verdade – que os bispos deveriam colocar sobre a mesa, na sua próxima assembleia.

* Texto publicado originalmente no Editorial do site 7margens.

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