“Barco Moliceiro Lagunar".

O livro “Monografia do Barco Moliceiro – Dois Séculos de História”, que colocamos à disposição do leitor, não pretende ser um álbum recheado de abundantes registos fotográficos, repetidos ou muito semelhantes, do actual (última versão) barco moliceiro lagunar.

Por Senos da Fonseca

À recuperação dos restos que ainda existiam, foram-se juntando novas unidades (saídas das mãos prodigiosas dos últimos e incomparáveis mestres da enxó e do machado), cujo destino se reparte, hoje, entre a sua utilização em fins regateiros festivos (sempre empolgantes de apreciar nas singraduras de arrepiar em procura de “amuras”) ou, embora decapitados dos seus imponentes mastros e velas fartas, navegam carregados de turistas, vindos de todo o mundo, atraídos a neles embarcar pelos volteios dos já “acanhados” canais da cidade de Aveiro, cativados pela singularidade, esbelteza e atrevimento das formas (únicas) da embarcação, a que se junta a garridice e o atrevimento jocoso e brejeiro dos seus painéis brochados.

Não… este livro não se limita a destacar essa faceta, a mais atrativa. Este livro inclui todo o historial do “Barco Moliceiro Lagunar”, historial que ultrapassa já três séculos, sempre que possível, documentalmente justificado.

Cartaz.

Abordaremos, assim, os aspetos que a seguir se apontam e que, nos parecem fundamentais, para o seu verdadeiro conhecimento:

1- As razões que levaram a notável mestrança naval, lagunar, a criar uma embarcação capaz de responder à solicitação do “rústico da lavra” que, sonhava ser possível, apesar de tudo, fazer dos pauis encharcados e lodosos, ribeirinhos, terra esverdeada produtiva, capaz de dar pão;

2- O fixar a data do aparecimento, na Laguna, do primeiro tipo de barco especificamente voltado para a apanha, por arrasto, dos fundos lodosos da ria. Historiar a apanha das ervagens que, já secas, misturadas com o “escasso”, serviam para engordar e impermeabilizar os encharcados e arenosos terrenos da beirada lagunar, onde, até então, nem uma vergôntea enfezada medrava. Surribados, ano após ano, adoçaram-lhes o ventre, misturando-lhes o moliço e escasso, prontos a receberem a semente que os transformou em orla de jardins verdejantes;

3- A sistematização de todo o historial do “Moliço”, cujas referências benfazejas, vinham já do Séc. XIII;

4- A reconstituição da dimensão da recolha de moliços que logo se mostrou excessiva, crescendo exponencialmente, com efeitos perniciosos, destrutivos, da fauna lagunar. No livro, elabora-se um cálculo, o mais aproximado possível (exercício único apenas iniciado por Regalla no Séc. XIX) das quantidades anuais extraídas após 1883, até ao fim das safras moliceiras (1961). Pela dimensão dessa dádiva lagunar, constatamos da sua importância na criação de um mundo fértil que permitiu atrair e fixar gentes para esta zona, ao princípio desesperadamente hostil, desértica de gente e vida. Perceberemos como os valores da riqueza provinda da zona lagunar, pelo “moliço”, ombrearam com os do sal e com os provindos da actividade de pesca interior;

5- A sistematização dos dois tipos de embarcações “Moliceiras”, Barco do Centro/Sul (MATOLA) e Barco do Norte lagunar, estudando-os (definindo-os), procurando as razões das suas diferenças, apresentando os planos geométricos de cada um deles, em 2D e 3D. No livro descreve-se todo o método de construção utilizado pela “mestrança da enxó e do machado” para produzir tão belos e singulares instrumentos de trabalho, guiados pelo célebre “pau-de-pontos”, onde, marca a marca, estão inseridas todas as medidas fundamentais da embarcação;

6- A referência inevitável à brochagem dos painéis (hoje pinturas de algum, assinalável, pendor artístico), ainda que feita de um modo completamente diferente do fim e intenção como tem sido abordada. O livro assume as razões que influenciaram o seu aparecimento na Laguna, a evolução, a “chança” na exibição festiva das embarcações, e a justificação da garridice, e até brejeirice, dos painéis. Porque, historicamente, não foram apenas os barcos Moliceiros de arrasto, as embarcações que colheram moliço da ria, o livro faz também uma revivência das Bateiras Erveiras, (tipos) incluindo destas os planos geométricos, ou construção, em 2D e 3D (o que julgamos do maior interesse para memória futura, integrados em Escolas, Museus, Centros de Estudo, etc.).  Finalmente, damos conta, do modo como a consulta dos Registos de Embarcações na Capitania do Porto de Aveiro (e dos livros daqui perdidos, hoje depositados no Arquivo Geral da Marinha), dão uma perfeita e completa indicação (destruindo ideias tantas vezes, erradamente, assumidas) sobre a evolução da tipologia das embarcações e das quantidades, anualmente construídas, bem como do nome e origem dos Mestres Construtores, lagunares, sua importância e dimensão.

Pensamos, pois, deixar bem claro que o propósito da “Monografia do Barco Moliceiro” pretende ser o inédito e o mais completo registo histórico do instrumento de trabalho prodigioso – o Moliceiro. Apresentamo-lo como a embarcação singular, única, que permitiu ao homem lagunar tirar do fundo lodoso da ria, o estrume vegetal, logo espalhado sobre o areal solto, roto, por onde a água se esvaía facilmente, ano após ano, engordando-o e, simultaneamente, impermeabilizando-o. Foi o suficiente para nele reter a humidade doce, vinda da ria, ao tempo em que, refrescados pela brisa marinha estival, permitia o milagre de transformar lamaçais inóspitos em fecundas terras pintadas de um verde tenro e fresco a garantir ao homem lagunar, o pão e leite de que precisava. E se, na dorida labuta, o vento e a marola, na invernia, lhe destruiam ou corroíam obra feita, o homem lagunar voltava de novo ao princípio, esfalfando-se a curar as feridas provocadas pela ingratidão da natureza.

Como em nenhum outro lugar, foi tão escancaradamente notória a interacção do homem com o meio que o rodeava, e onde se pretendia instalar. Aqui, o homem tornou-se um verdadeiro fazedor de paisagens. Agarrado ao arado, com ele sulcou vezes sem fim a planura lassa, misturando-lhe o estrume marinho, estendendo-lhe a semente, para nela fazer surgir a clorofila das gramíneas intensivamente deitadas à terra.

Nos raros intervalos da labuta, teve ainda tempo e disposição para, em dias assinaláveis, esquecer as agruras da ciclópica tarefa de demiurgo terreno a fazer um mundo novo, ao encontrar alegria e renovada esperança no transitório dos momentos festivos, assinalados, dos seus oragos protectores. Gente para quem, no dizer de Luís Magalhães, “a semana é de água e o domingo de terra”.

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