A geminação de Aveiro com Bourges

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Paços de Concelho, Aveiro.

Apesar de terem começado mal, as relações com Bourges acabaram não só por se tornarem oficiais, mas também por serem frequentes, diversificadas e frutuosas, com visitas recíprocas.

Diamantino Dias *

O facto de pertencer ao quadro de pessoal dos Serviços de Turismo da Câmara Municipal de Aveiro levou a que me tivessem sido atribuídas tarefas no âmbito das “Relações Internacionais”. Hoje, escreverei sobre uma das experiências que tive no sector das “Geminações”, área esta em que o Município de Aveiro atravessou uma fase de grande actividade, tendo “Cidades Irmãs” disseminadas pelos quatro cantos do mundo: Brasil (Belém do Pará e Pelotas), Japão (Oita), África (Santa Cruz em Cabo Verde e Ilha do Príncipe em São Tomé e Príncipe) e Europa ( Ciudad Rodrigo, em Espanha e Bourges e Arcachon, em França).

Na sequência de uma visita de elementos da Vereação a uma cidade francesa de que não me recordo o nome, a Câmara convidou a “Musique Municipale de Bourges” para vir a Aveiro dar um concerto, sendo todos os encargos, excepto a viagem de comboio, por conta da autarquia.

Fui incumbido de tratar do alojamento, refeições, organização do concerto e programa social. Quando me foi entregue a lista dos visitantes, surpreendeu-me, à primeira vista, o seu número (quase noventa); a minha surpresa aumentou, quando constatei que havia uma vintena de nomes femininos; e continuou a subir de grau, ao constatar que seriam necessários vinte e tal quartos de casal. Nunca tinha visto nenhuma Banda francesa… As senhoras seriam músicas?, ”majorettes”? Como se justificaria uma percentagem tão elevada de casais?

Segundo indicação que me tinha sido transmitida, por razões de ordem económica, alguns visitantes deveriam ficar em quartos da antiga “Escola Santa Joana”, no largo Maia Magalhães, e os restantes no Hotel Imperial, onde seriam servidas as refeições principais.

Solicitei dois autocarros dos transportes urbanos, aos Serviços Municipalizados, e, no dia da chegada, acompanhado pela colega Maria Manuel Vilhena Barbosa, esperámos a Banda, na Estação da CP. Quando o grupo desembarcou, o meu grau de surpreendimento voltou a aumentar, na medida em que uma boa metade do grupo era constituída por casais da terceira idade, de mala de viagem na mão, mas sem transportar nenhuma caixa ou saco que fosse susceptível de conter um instrumento. Distribuídas as pessoas pelos autocarros, em função do local de destino, a minha colega dirigiu-se para a supracitada Escola e eu para o Hotel.

Antes do jantar, fui interpelado por um senhor idoso que me perguntou se tinha sido eu o responsável pela distribuição dos quartos. Face à minha resposta afirmativa, quis saber a razão, porque, tendo pago tanto como os outros, ele e a sua mulher estavam alojados num quarto sofrível, num estabelecimento de ensino, e outras pessoas estavam instaladas num hotel dotado de boas condições. Respondi que deveria haver qualquer confusão, já que ninguém pagaria nada pelos quartos nem pelas refeições, dado que a estadia da Banda seria paga pela Câmara. Redarguiu que não só não fazia parte da “Musique Municipale de Bourges”, mas também que se tinha inscrito para um passeio pago a Portugal, organizado pela predita Banda, digressão essa que tinha sido publicitada na Imprensa regional. Comprovou estas afirmações, exibindo o respectivo recibo de pagamento e, ainda, um recorte de um jornal de Bourges.

Depois de ter procedido, da maneira mais discreta possível, a um breve inquérito, apurei os factos que a seguir menciono, os quais transmiti ao Presidente da Câmara, Girão Pereira, eleito pelo CDS, que foi o primeiro elemento da edilidade a chegar para o jantar de boas vindas, o qual não ficou menos estupefacto do que eu.

– A “Mairie de Bourges” era uma das mais importantes autarquias dominada pelo Partido Comunista Francês.
– A “Musique Municipale de Bourges” não tinha nenhuma ligação com aquela Câmara e tanto se podia ter chamado assim, como “Musique 14 Juillet” ou “La Musique Berruyère” (os habitantes daquela cidade são chamados ”berruyers”) ou ter outro nome qualquer.
– A “Mairie de Bourges” tinha tido conhecimento da deslocação, mas não tinha tido nela qualquer responsabilidade, ao contrário do que se pensava na Câmara de Aveiro.
– A viagem tinha sido organizada e publicitada somente pelo Maestro da Banda que tinha cobrado bilhetes a toda a gente, inclusive aos músicos, como se a Câmara de Aveiro não suportasse nenhuns encargos, tendo, com isso, deduzi eu e, mais tarde, confirmou-se, arrecadado uma boa maquia.

Posteriormente, este caso foi denunciado à “Mairie de Bourges” que pouco pôde fazer, a não ser tornar pública a condenável atitude do Maestro, porquanto não tinha sido cometida nenhuma ilegalidade, já que o convite lhe tinha sido dirigido.

Todavia, e apesar de terem começado mal, as relações com Bourges acabaram não só por se tornarem oficiais, mas também por serem frequentes, diversificadas e frutuosas, com visitas recíprocas, por exemplo, das Associações de Comerciantes, do Pessoal dos CTT, de Associações Culturais – o “Grupo Folclórico de Eixo”, numa ida a Macon, que eu acompanhei, pernoitou e fez uma exibição em Bourges – e várias outras deslocações de que não me recordo, tendo este bom entendimento culminado numa geminação entre as duas cidades.

Aveiro foi mesmo convidada a fazer-se representar na “Foire de Bourges”, importante feira do centro de França, onde foi montado um Posto de Informação Turística, por mim e pela predita colega Maria Manuel, que lá ficou até ao fim do certame, tendo eu regressado a Aveiro com o Vereador Luís António Moreira Tavares, que participou na cerimónia da Inauguração.

Durante essa visita inaugural, que também acompanhei, aconteceu-me algo que não resisto a contar. Quando chegámos ao espaço ocupado pela Força Aérea Francesa – que, para captar pessoal para as suas fileiras, tinha montado um ”stand”, cuja grande atracção era o simulacro de um sistema de ejecção de emergência para os pilotos de aviões de combate -, o Maire Jacques Rimbault (homófono do jovem poeta percursor do surrealismo, Arthur Rimbaud) resolveu exibir-se para os seus votantes e, no fim, perguntou, do alto do seu metro e oitenta e muitos, se mais alguém gostaria de experimentar o aparelho. Subiu-me o patriotismo à cabeça e lá fui eu dar um salto até tecto do pavilhão, com grandes queixas do meu estômago, que me deu a sensação de que teria preferido ter ficado no “cockpit”. Não acabaram ali as minhas experiências militares em Bourges, porque, durante outra estadia, tive a oportunidade de visitar a fábrica onde eram produzidos os mísseis “Exocet”, que se tornaram muito conhecidos, quando foram lançados pelos aviões franceses da Força Aérea Argentina “Super Etendard”, na Guerra das Malvinas.

Não quero encerrar este capítulo sobre Bourges sem falar de um amigo ”berruyer”, chamado Robert Terminé, membro da “Associação de Amizade França-Portugal”, de quem fiquei a conhecer alguns traços e casos curiosos que ficaram registados, para sempre, na minha memória. Antigo combatente da Segunda Grande Guerra Mundial, tinha levado um tiro numa perna – não podia ver nenhum alemão da sua idade, sem pensar que poderia ter sido ele o maldito boche que o tinha chumbado –, pelo que tiveram de lhe extrair um bocado de osso que ele guardava, religiosamente, numa vitrina exposta na sua adega, onde cheguei, por mais do que uma vez, a beber uns copos e a comer uns aperitivos, pousados sobre um pesado manto negro, com debruns dourados, que cobria a sua futura urna. Para terminar este parágrafo dedicado a esse velho amigo, referirei algo que me foi contado por ele.

Um dia, em Salreu, de visita a casa de uns emigrantes seus conhecidos, depois de almoçar, quis demonstrar os seus conhecimentos de português. Diga-se que gostava de o fazer, mas eles eram tão reduzidos que, quando estava a falar comigo e eu deixava de o compreender era porque ele estava a tentar comunicar na nossa língua. Aproveitou ter aparecido o gato da casa e, então, ele disse: “Eu gostar muito de gatôs”; os donos da casa pensaram que ele queria ”gateaux” (bolos) para a sobremesa, foram buscá-los e ele disse “Eu dizer gostar do ”chat” (gato) ”; então, serviram-lhe chá. Robert acabou por explicar, em francês, que o que queria dizer era “Eu gosto muito de gatos”, mas acabou por comer os ovos-moles, que ele bem conhecia e apreciava, acompanhados de uma chazada.

E por aqui me fico, no que respeita a esta geminação, uma entre muitas, entre as quais algumas não passavam de congeminações.

* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura)

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