
Em Portugal, já nos habituámos à expressão “justiça lenta”. Mas o que se tem passado com o processo de José Sócrates — iniciado há mais de uma década e ainda sem julgamento efetivo — deixa de ser apenas lentidão. Ao longo dos anos, assistimos a um desfile de prazos, recursos sobre recursos e incidentes processuais que adiam o essencial: a responsabilização, caso ela se prove necessária. Enquanto isso, os crimes vão prescrevendo e a justiça esvazia-se em si própria.
Por Diogo Fernandes Sousa *
Não se trata apenas de um caso isolado. O problema é sistémico. O processo Sócrates é apenas o mais mediatizado de uma série de processos onde a sucessão de medidas dilatórias — legalmente admissíveis, mas eticamente discutíveis — transforma o tempo num instrumento de impunidade. E quando o tempo é usado para vencer a justiça, a democracia perde.
Medidas dilatórias são, na prática, o uso estratégico de expedientes legais com o objetivo de atrasar o desenrolar normal do processo. São uma forma de guerra processual, cuja tática é desgastar o sistema até que este colapse sobre os seus próprios prazos. E o colapso tem um nome claro: prescrição. A partir desse momento, mesmo que o crime tenha existido, já não há o direito de o julgar.
O resultado não é apenas o descrédito da justiça. É também a convicção crescente de que a justiça portuguesa é seletiva: célere para os pequenos delitos, morosa até à impotência quando se trata de figuras políticas ou económicas.
Evitar esta derrocada exige coragem política e reformas concretas. Desde logo, uma revisão dos prazos de prescrição que hoje são, em muitos casos, demasiado curtos para a complexidade de certos crimes, sobretudo os de natureza económico-financeira. Mas também é preciso dotar os tribunais de mais recursos humanos e tecnológicos, limitar o uso abusivo de recursos e dar aos juízes mais poder para travar manobras dilatórias. Não se trata de limitar o direito à defesa, mas de impedir que ele se transforme numa arma contra a própria justiça, tal como está a acontecer no caso dos crimes que acabam por prescrever sem julgamento.
O Ministério Público tem igualmente de responder perante a sua responsabilidade porque investigações que duram anos sem acusação e acusações que chegam já com o tempo a contar para o fim legal do processo são inaceitáveis.
O caso Sócrates tornou-se um espelho desconfortável do sistema judicial. Quando um país democrático, com instituições sólidas, permite que durante mais de dez anos um processo desta magnitude continue sem julgamento, está a declarar falência parcial da sua justiça penal.
É tempo de acabar com a justiça dilatória e colocar o foco em julgar com celeridade, com rigor e com equidade, porque enquanto a justiça tarda, os crimes prescrevem e a democracia perde-se silenciosamente.
* Escritor do Livro “Rumo da Nação: Reflexões sobre a Portugalidade”. Professor do Instituto Politécnico Jean Piaget de Vila Nova de Gaia.
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